domingo, 12 de julho de 2015

A Menina que Nunca Chorava Torey Hayden. «Chamava-se Sheila. Chegou na segunda-feira seguinte, arrastada por Ed, o meu director, que ficou para trás, visivelmente preocupado, enquanto abanava as mãos como que a enxotá-la para dentro da minha sala de aula»

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«(…) Eu ensinava naquilo que era afectuosamente referido no nosso sector escolar como a lixeira. Aquele era o último ano antes da entrada em vigor da lei do congresso que introduzia a integração, na escola normal de todas as crianças com necessidades especiais, que assim seriam educadas num ambiente com restrições mínimas; como tal, o nosso sector escolar ainda possuía as inúmeras salas de educação especializada, cada qual dedicada a uma diferente categoria de incapacidade. Havia salas de aula paras deficientes motores, para os deficientes mentais, para os pré-psicóticos, para os deficientes visuais..., havia salas de aula para tudo. As minhas oito crianças eram aquelas que ninguém queria, as que desafiavam qualquer classificação. Todas sofriam de perturbações emocionais, mas a maior parte delas também tinha perturbações mentais ou motoras. Das três raparigas e cinco rapazes do grupo, três não sabiam falar, uma sabia mas recusava-se e outro só era capaz de ecoar as palavras das outras pessoas. Três dessas crianças ainda usavam fralda e outras duas descontrolavam-se com regularidade. Uma vez que eu tinha o número completo permitido por lei para cada turma de crianças com deficiência aguda, foi-me concedido um assistente no início do ano; porém, contra as minhas expectativas, o meu assistente não era um dos mais brilhantes e esforçados a quem a escola já dera emprego. Anton era um trabalhador sazonal imigrante, de origem mexicana, que fora recrutado através da delegação local da Segurança Social. Não terminara o curso do ensino secundário, nunca passara o Inverno inteiro no Norte e seguramente nunca mudara uma fralda a uma criança com sete anos de idade.
A minha outra ajudante era Whitney, uma jovem liceal de catorze anos, que trocara as suas horas de estudo acompanhado para trabalhar como voluntária na nossa aula. Aos olhos de toda a gente, não parecíamos ser um grupo muito promissor e, inicialmente, o caos era notório; no entanto, com o passar dos meses, fomos sofrendo uma metamorfose. Anton dava provas de ser sensível e empenhado, e a sua dedicação às crianças foi visível logo nas primeiras semanas. Os miúdos, em contrapartida, reagiam bem ao facto de terem um homem na sala de aula e fortaleciam os seus laços de união. A juventude de Whitney, ocasionalmente, tornava-a mais parecida com uma das crianças do que com uma educadora, mas o seu entusiasmo era contagiante, contribuindo para que todos nós encarássemos os acontecimentos como aventuras, e não como os desastres em que muitas vezes se transformavam. As crianças cresciam e evoluíam e, por altura do Natal, já constituíamos um grupinho coeso. Foi então que Ed me enviou uma carga de dinamite com seis anos de idade.
Chamava-se Sheila. Chegou na segunda-feira seguinte, arrastada por Ed, o meu director, que ficou para trás, visivelmente preocupado, enquanto abanava as mãos como que a enxotá-la para dentro da minha sala de aula. Era muito franzina, com olhos hostis, cabelos loiros compridos e emaranhados e um cheiro horrível. Dada a fama que trazia, estava à espera de deparar com uma coisa muito mais robusta. A avaliar pela aparência, não devia ser muito maior do que o rapazinho de três anos que raptara. Raptara? Observei -a atentamente. Graças à proverbial burocracia no sector do ensino, a ficha escolar de Sheila não chegou antes dela; assim, naquele primeiro dia, quando saiu para almoçar, eu e Anton aproveitámos a ocasião para ir ao gabinete e examinar rapidamente o dossiê. Era desolador de se ler, mesmo segundo os padrões da minha turma. A nossa cidade, Marysville, situava-se nas proximidades de um grande hospital psiquiátrico e de uma prisão estadual, facto que, aliado ao grande número de imigrantes, criara uma classe baixa desproporcionada, em que muitos dos seus membros viviam em condições de extrema pobreza. Os edifícios do campo de imigrantes tinham sido construídos como alojamento temporário de Verão e muitos deles, literalmente, mais não eram do que barracas de madeira e cartão e até careciam dos equipamentos mais básicos». In Torey Hayden, 1995, A Menina que Nunca Chorava, tradução de Fernando Antunes, Editorial Presença, 2007, 2012, Lisboa, ISBN 978-972-233-804-2.

Cortesia de EPresença/JDACT