domingo, 19 de julho de 2015

O Sangue. O Vento. A Guerra. Contos. Gonzalo T. Ballester. «… se vinha do mar ou do monte, e que orifício da casa ou que racha das telhas tinha escolhido como flauta de Pã ou apito de capador. Às vezes, nas páginas que tenho escritas e publicadas, ponho em cena…»

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O sangue, o vento, a guerra e outras circunstâncias
«(…) Muito mais nos importava a sua antiguidade, ou melhor, quase a sua velhice, pois já estava em decadência e tudo nela havia adquirido manias de velho, as portas e as janelas, cada uma abria e fechava a seu modo, respondia-nos gemente ou queixosa, às vezes casmurra, outras ronceira: tinham vida, as portas e as janelas, as grandes tábuas rangentes e trémulas dos sobrados: mereciam chamar-se com um nome cristão, ou pelo menos próprio. Se alguma tinha ficado aberta, porta ou janela, e o vento lhe batia de noite, não era preciso percorrê-las a todas, de tantas que eram, até a encontrarmos, pois reconhecia-se pelo seu guinchar ou pelo seu bater. É preciso fechar a janela da cozinha, por exemplo, ou a porta do galinheiro, ou a do espigueiro. Sabíamos também, pelo ranger das tábuas dos sobrados, quais eram as que se aguentavam firmes e quais as que começavam a ceder, é melhor não pisar muito por aí, cuidado que estão podres, as vigas; e, se alguém andava por elas, sabíamos quem era e por onde andava, por remotos que soassem os seus passos. A casa era, antes de mais, som, todo um mundo sonoro: enchia os espaços e dava-lhes forma, marcava distâncias e até limites, o que está para lá do que soa não nos pertence, ou pertence-nos de outro modo, o bater da água contra o engenho do moinho ou as salvas de mar e terra comemorando o santo do rei. Eram também sons vivos, com amor e com drama, às vezes, e outras cómicos, melodramaticamente cómicos, como naquela ocasião em que nos despertou um estrondo, sabe Deus que horas seriam, toda a gente dormia; e percorremos a casa, as mulheres novas com luzes, atrás; percorremo-la toda, recanto a recanto, Obdúlia à frente, com uma tranca de ferro para bater em quem aparecesse, corpo ou espírito, e nada. E, quando já tínhamos voltado para os nossos quartos e explorávamos, medrosos, os espaços mudos, então, no silêncio, repetiu-se o ruído, maior ainda, com o acrescento pavoroso de vidros partidos, não pode ser um fantasma, que os fantasmas andam com mais cautela, leva-os o vento, empurra-os a brisa, move-os o ar que entra por qualquer greta, quando muito produzem um ligeiro roçagar; e toca a percorrer de novo a casa, janela a janela, todas inteiras.
Acontecera que o S. José francês da minha avó, a litografia colorida da sua cabeceira, tinha caído em dois tempos, e no segundo partira-se o vidro. A minha avó rezava a meio da noite. Viu-nos chegar, armados de tranca de ferro e palmatórias. Quando descobrimos a causa, chamou-nos loucos. Da mesma maneira reconhecíamos o vento, do vento terei que falar também com certo vagar, se vinha do mar ou do monte, e que orifício da casa ou que racha das telhas tinha escolhido como flauta de Pã ou apito de capador. Às vezes, nas páginas que tenho escritas e publicadas, ponho em cena (quando vem ao caso) um vento forte que soa, música sem pauta, um pouco louca, nas frinchas de uma casa; pois, em todas elas, é a recordação do vento de Serantes que sugere a imagem ou que a suporta, do mesmo modo que me serviu de termo de referência quando me vi metido em vendavais tão ruidosos e furiosos como aqueles. Os que desciam das neves do Canadá, pela bacia do Hudson! E, certa vez em que descrevi o cataclismo de milhares de cavalos montados por um único cavaleiro, era este vento que me vinha à memória. Descia pelo vale, desde La Bailadora, ou entrava pelo mar: ai, este era o que escurecia a face das águas e amarelava a crista das vagas!
Estou a vê-lo e a ouvi-lo, menino com medo e espanto, por trás das vidraças, naquele Inverno em que vivemos junto ao mar, um pouco abaixo da casa da avó: o caminho passava sob as nossas janelas, e do outro lado quebravam-se as ondas cruzando-o de espuma! Com um bramar de eucaliptos, que ali estavam, os primeiros do vale, já antigos, corpulentos, e, aguentando as suas raízes intermináveis, um pedaço de terra que o mar podia levar consigo. Em frente das minhas janelas, mais acima, na casa da avó, o que bramia eram os ramos da nogueira. Temíamos que uma noite daquelas o vento nos levasse o telhado, mas, como vêem, morreram todos os da casa, morreu Pura, a última, que parecia imortal, tinha noventa e seis anos quando morreu, e as telhas permaneciam. Cheguei a pensar que tudo naquela casa tinha sido chamado a perdurar, as mulheres, as telhas, as recordações. A nogueira, em compensação, derrubaram-na, e não foi o vento, que não teria podido dar conta do seu tronco, mas sim a cobiça e os machados. Disseram que aquele ramo que atravessava o caminho, e vinham as suas folhas lamber as vidraças da minha janela, estorvava a passagem dos altos camiões. E quem lhes mandava a eles serem tão altos?! Por baixo daquele ramo, por si só como uma grande árvore e um grande dossel, passaram os enterros da minha aldeia, os primeiros automóveis, as turbamultas da revolução. Na nogueira faziam o seu ninho os pássaros, da nogueira nos vinha, ao alvorecer, a sua algazarra, e dos lados da nogueira, não sei se dos seus ramos, me chegou a voz do rouxinol, da primeira vez que ouvi o seu canto. Raiava a madrugada, e alguém me acordou, talvez Obdúlia, que se preocupava muito com as minbas experiências líricas. Escuta esse pássaro que canta. É o rouxinol. Não é o pintassilgo? Não, é o rouxinol, repara bem, e fixa-o. Tornei a ouvi-lo pela última vez não há muito, nesta mesma Primavera em que escrevo, a do ano de 82». In Gonzalo Torrente Ballester, O Sangue, O Vento, A Guerra, e outras Histórias, Contos, Editorial Caminho, Uma Terra Sem Amos, Lisboa, 1994, ISBN 972-21-0979-0.

Cortesia de Caminho/JDACT