quinta-feira, 23 de julho de 2015

A Musa em Férias. Idílios e Sátiras. Guerra Junqueiro. «Tudo ri e brilha e [cdu] canta neste divino esplendor: o orvalho, o néctar da planta, o aroma, a língua da flor. Enroscam-se aos troncos nus as verdes cobras da hera. Radiosos vinhos de luz cintilam pela atmosfera»

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Idílio 1
«A terra produz o feto
imenso do seu amor;
a larva dá-nos o insecto,
a campa dá-nos a flor.

Nas imundícies leprosas,
nas podridões verde-negras
há frescas moitas de rosas
e ninhos de toutinegras.

Da terra mais corrompida
rebenta a planta mais forte:
a raiz, boca da Vida,
mama nos peitos da Morte.

Os insectos deslumbrantes,
inflamados como brasas,
são ametistas, diamantes,
são carbúnculos com asas.

Uns feitos para a batalha,
com a guerra por destino,
puseram cotas de malha
de aço e bronze e d’ouro fino.

Outros, artistas mimosos,
vestem librés refulgentes
dos veludos mais preciosos,
das rendas mais transparentes.

Não sei que orgia incorpórea
embebeda o pensamento...
A Natureza é uma glória;
o azul, um deslumbramento.

Tudo ri e brilha e canta
neste divino esplendor:
o orvalho, o néctar da planta,
o aroma, a língua da flor.

Enroscam-se aos troncos nus
as verdes cobras da hera.
Radiosos vinhos de luz
cintilam pela atmosfera.

Entre os loureiros das matas,
que crescem para os heróis,
dá o luar serenatas
com bandas de rouxinóis.

É a Terra um paraíso
e o Céu profundo lampeja
com o inefável sorriso
da noiva, ao sair da igreja.

E o homem, verme do asfalto,
que traz Deus na consciência,
o homem, que está no alto
da montanha da existência;

que faz entre as harmonias
deste esplendoroso assombro?
Vai ouvir as cotovias,
levando a espingarda ao ombro».
Poema de Guerra Junqueiro, in ’A Musa em Férias

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