quinta-feira, 9 de julho de 2015

Os Filipes. António Borges Coelho. «Tinha corpo e uma identidade própria. O seu território fora definido pelo Tratado de Alcanizes em1297. Dir-se-á que Portugal ainda não tinha identificado as fronteiras e todos os penedos divisórios…»

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«Este volume narra a história de umas bodas de sangue, legitimadas por um razoável contrato de agregação, seguido, ao longo de sessenta anos, por frequentes episódios de violência doméstica. O contrato de agregação, aprovado pelas Cortes de Tomar, garantia formalmente a Portugal a continuidade das suas instituições, das suas leis gerais, mas retirava-lhe a independência, proporcionada por um rei nacional. A política, a paz e a guerra passaram a ser traçadas em Madrid. E o contrato de agregação não era entre parceiros iguais. Basta um apontamento para que não restem dúvidas. Os titulares de Castela dialogavam com o rei de chapéu na cabeça, mas os duques de Bragança, de Aveiro, os titulares e fidalgos portugueses tinham de tirar o chapéu ou o barrete. A agregação dos Estados e territórios da Península sob a coroa dos Filipes não seguiu um ideal de união de iguais nem assentava num sentimento dominante de identidade hispânica. Materializava a ambição de juntar mais território, mais soldados, mais riqueza para manter e ampliar a posição dominante e prosseguir a cruzada utópica de restabelecer, sobre a Europa luterana e calvinista, a monarquia universal católica e de a alargar, aos povos dos outros continentes, com as armadas de comércio, de guerra e a pregação dos soldados de Cristo.
O direito sucessório não estava contra Filipe II (I). Ele e dona Catarina de Bragança eram os candidatos credíveis e legítimos. Mas Filipe, por muito que untasse as mãos de fidalgos e letrados, por mais propaganda desenvolvida desde a tragédia de Alcácer Quibir, por mais fidalgos portugueses que resgatasse do cativeiro de Marrocos, não conseguia tomar posse da herança. O reino esteve sem rei durante quase meio ano e, apesar da ameaça do seu exército, o primeiro a ser legitimado pelos procuradores remanescentes das Cortes de Santarém e aclamado em Lisboa, como um Messias, foi o bastardo do infante Luís, António, Prior do Crato. Filipe teve de mandar avançar o exército de 20 000 homens que reunira em Badajoz e fazer zarpar, sobre o Algarve, Setúbal e Lisboa, a armada do marquês de Santa Cruz. Portugal reagia a ser herdado como um palácio, uma quinta ou mesmo um senhorio. Tinha corpo e uma identidade própria. O seu território fora definido pelo Tratado de Alcanizes em1297. Dir-se-á que Portugal ainda não tinha identificado as fronteiras e todos os penedos divisórios mas estavam, no essencial, esclarecidas pelos concelhos, pelos senhorios e pelos sinais das guerras passadas.
O Estado português, então circunscrito ao território do Condado Portucalense, proclamou-se independente na primeira metade do século XII e expandiu-se para sul e para leste. Depois da conquista do Algarve ao poder mouro, o seu corpo definira-se disputando o espaço a Castela e para lá voltava os seus castelos e os cus da cachorrada das suas igrejas. E desde o tempo do senhor rei Dinis I, isto é, desde os finais do século XIII, teve rei e governo próprios sobre todo o território e sobre todos os poderes, incluindo o mais poderoso, o eclesiástico. De 1448 datava também o primeiro Código Português que reunia as leis gerais do reino, as Ordenações Afonsinas, publicadas pelo regente infante Pedro e seu sobrinho e genro Afonso V. Por sua vez a língua portuguesa substituíra o latim, nos documentos oficiais e particulares, desde o governo do monarca Dinis I. E ganhava forma na documentação pública e privada, nas Crónicas de Fernão Lopes, nos livros do rei Duarte I e do infante Pedro, nos poetas do Cancioneiro Geral, publicado por Garcia de Resende. No século XVI é uma língua moderna e na Ásia uma língua de comércio. Neste século, a literatura portuguesa atingia um dos momentos mais altos da sua história e ombreava com as literaturas europeias mais avançadas na poesia, na história, na literatura de viagens, mesmo no teatro, na oratória e até nos romances de cavalaria. Mas a massa dos portugueses entenderia e falava a sua própria língua? A leitura da historiografia e das narrativas portuguesas da época resolvem a dúvida. Leia-se a Peregrinação e ver-se-á como os transmontanos, minhotos, beirões, estremenhos, alentejanos e algarvios se entendiam nos portos da Ásia até à China e ao Japão.
Mas não é verdade que na Corte se falava português e castelhano e que vários autores, com particular excelência para Gil Vicente e Francisco Manuel Melo, escreveram altamente nas duas línguas e partilham com relevo a literatura portuguesa e castelhana? E não circulavam em Lisboa cantigas de escárnio e de amor em castelhano?
É verdade. Até se cantava na língua árabe como documentam os Autos de Gil Vicente. Para dizer toda a verdade, nas ruas de Lisboa viviam falantes de línguas africanas, asiáticas, americanas e europeias. Mas na rua, mesmo na Corte e na literatura produzida por autores portugueses, a língua materna é a dominante». In António Borges Coelho, Os Filipes, Editorial Caminho, 2015, ISBN 978-972-212-740-0.

Cortesia Caminho/JDACT