terça-feira, 7 de julho de 2015

O Sebastianismo, História Sumária. José Van Den Besselaar. «A profecia tem, por definição, um núcleo irredutível à pura racionalidade. Digamos, embora o termo seja dos mais ambíguos, que tem um núcleo mítico. Mas o mito é um motor poderoso de processo histórico»

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«(…) À conquista de Ceuta se seguiram as espantosas viagens marítimas, que, no fim do século XV, foram coroadas com o descobrimento do caminho marítimo para a Índia e do Brasil, e com a construção de um grande Império colonial no Oriente e no Ocidente. Eram motivos sobejos para que a pequena casa lusitana se fosse embriagando de tantas realizações e chegasse a adjudicar-se uma missão universal. É verdade que, nessa mesma época dos Descobrimentos, também se ouviram muitas queixas sobre a perda dos valores tradicionais, consequência inevitável de grandes e rápidas transformações sociais. Mas tudo nos leva a crer que também os pessimistas não deixavam de acreditar na missão histórica do país. A este período de ufanismo pôs termo a aventura do rei Sebastião, que teve por consequência a perda da independência. Mas a humilhação não tardou a reavivar o messianismo do povo português, que não queria abandonar o seu antigo sonho e cantava as profecias ao som das cadeias, e com a brandura deste som os ferros se tornavam menos duros e os corações mais fortes.
Deu-se o milagre da Restauração em 1640, que a muitos parecia iniciar a era das grandes felicidades. Mas, passados alguns anos, a recuperação da autonomia nacional deu provas de não ser o início do Império Mundial: Portugal perdera uma grande parte das suas colónias, e teve de contentar-se com um papel muito modesto na cena política europeia. A frustração continuava a existir e, com ela, as esperanças messiânicas, que adquiriram novas forças sobretudo no reinado de João V e na época das invasões francesas. Relatá-las e comentá-las será o assunto deste livro.

As profecias e os cartapácios dos sebastianistas
Antes de entrar na relação dos factos principais da história do sebastianismo, julgo valer a pena deter-me por algum tempo nas profecias, que constituíam o baluarte da seita. O que nos interessa sobretudo é saber como elas se originaram numa sociedade sacral, qual foi a sua função e sob que forma entraram nas colecções sebásticas, a que António Vieira, com certo desdém, chama cartapácios.

A profecia e a sua exegese
Assim como os nossos conhecimentos do passado se baseiam em documentos históricos, assim as esperanças messiânicas se fundam em profecias. Mas existe uma diferença fundamental: ao passo que o documento histórico é apenas a base dos nossos conhecimentos do passado, a profecia é a base e, ao mesmo tempo, o produto das esperanças messiânicas. Estas, na fase inicial da sua existência, são vagas e subjectivas, necessitando de uma autoridade reconhecida que lhes possa dar o devido crédito. A profecia torna concreto o que nelas era vago e indefinido, abonando o que nelas poderia parecer ilusório com o prestígio de um santo ou qualquer outro varão ilustre.
Ao homem moderno, embora cada vez mais inclinado a acreditar em horóscopos, dias aziagos e outros agouros, custa acreditar em profecias. É que ele vive num mundo fechado, em que ainda há lugar para a actuação misteriosa de um Destino imanente, mas cada vez menos para o governo de um Deus pessoal, o Senhor transcendente da História, o qual nela se revelou e não deixa de revelar-se. Ora, a profecia é uma tentativa para penetrar nos mistérios da Divina Providência. Ela dá um sentido, divinamente garantido, ao processo histórico e, por conseguinte, à actividade colectiva de uma dada sociedade. A profecia é filha de sociedades que vivem da fé num Deus que remunera as virtudes e castiga os pecados já neste mundo; nasce e cresce em épocas ainda não reguladas por pesquisas metódicas da Natureza, nem pelas suas aplicações técnicas. Em tais períodos a contemplação da causa final prevalece sobre a investigação das causas eficientes. Mas cumpre repararmos que a crença num Poder superior a todas as forças da Natureza não chega a eliminar a Razão. Deus revelou os seus desígnios históricos pela boca de profetas, e o intelecto humano pode perscrutá-los e, até certo ponto, compreendê-los. Fides quaerens intellectum.
A profecia tem, por definição, um núcleo irredutível à pura racionalidade. Digamos, embora o termo seja dos mais ambíguos, que tem um núcleo mítico. Mas o mito é um motor poderoso de processo histórico. Leva uma grande vantagem sobre as construções puramente racionais, porque afecta o homem na sua totalidade, não se dirigindo apenas ao seu intelecto, mas tocando-lhe o coração, incentivando-lhe a imaginação e motivando-lhe a vontade. A quem acredita nela, a profecia dá uma visão do futuro, convidando o homem a colaborar com os desígnios divinos». In José Van den Besselaar, O Sebastianismo História Sumária, Instituto Camões, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Biblioteca Breve /Volume 110, Livraria Bertrand, 1987.

Cortesia de CV Camões/JDACT