domingo, 3 de julho de 2016

A Capital da Solidão. Roberto Pompeu de Toledo. «Operação Brasil? Antes, seria Operação Sul do Brasil. Ou, com mais amplitude, Operação Cone Sul, para usar nomenclatura revista e actualizada. Ou, para ir directo ao ponto, Operação Prata»

Cortesia de wikipedia e jdact

«A primeira vez que o Estado subiu a serra foi na pessoa de um português de alta estirpe, amigo do rei, íntimo da corte e agente graúdo da empreitada mares afora que Portugal elegera como seu ramo prioritário de negócios. Martim Afonso Sousa, este o seu nome. Não que algum europeu não o tivesse feito antes. É certo que pelo menos um estava mais do que acostumado ao percurso: um certo João Ramalho, do qual se ouvirá falar, nesta história, tanto quanto de Martim Afonso, ou mais. Mas quem era esse Ramalho? Medido pelos valores do Velho Mundo, um bruto, quase no mesmo nível de selvageria dos selvagens no meio dos quais vivia. Já Martim Afonso, comandante da mais importante expedição enviada à terra desde Pedro Álvares Cabral, tanto representa a situação, o status quo, o establishment, que os póstumos capricharam em premiá-lo com a melhor compleição física possível, e vesti-lo com as melhores roupas. Veja-se o quadro que representa sua chegada a São Vicente, obra de Benedito Calixto, pertencente ao acervo do Museu do Ipiranga, em São Paulo. Afonso apresenta-se no rigor da moda aristocrática do período, um gibão verde-claro, que se prolonga num saiote até metade da coxa, e sobre essa refinada peça, a principal do guarda-roupa masculino de então, uma capa branca e rosa. O todo é suave sem deixar de ser viril. Na cabeça, o chapéu achatado, tipo boina, que era o mais fino que se podia ter. E pendurada ao pescoço a cruz de malta, símbolo do poder português. Talvez não fosse o melhor traje para descer à praia. Talvez não tenha sido exactamente assim que Afonso se apresentou. Em todo caso, o pintor fez bem em representá-lo dessa maneira. Serve para que não reste dúvida de que se trata do chefe, do dono, do senhor, tanto mais que o outro lado é composto pelos brutos índios nus. Benedito Calixto, nascido no litoral paulista, conhecia bem o episódio que transpôs para este quadro. Além de pintor, era um pesquisador da história paulista. Por isso, intriga ainda mais as feições que atribuiu aos índios, carregadamente japonesas. Japoneses e rústicos, os índios deste quadro parecem samurais dos filmes de Akira Kurosawa.
Martim Afonso nasceu em 1500, mesmo ano da expedição de Cabral, num dos melhores berços disponíveis no Portugal daquele tempo. Tanto o avô como o pai tinham o título de senhor do Prado. A este, o pai, Lopo Sousa, acrescentou o de senhor de Pavia e Baltar. O pai destacou-se como alcaide-mor, quer dizer, chefe militar, de Bragança, e aio do duque de Bragança, nobre mais importante de Portugal, tanto que a família Bragança, um século e meio depois, acabaria entronizada como a dinastia reinante. Martim Afonso foi mais longe ainda que o pai. Ele e o primo, António Ataíde, despontaram para a vida pública como aios do príncipe herdeiro, João, o futuro João III, filho do rei Manuel I, dito o Venturoso. Aios e grandes amigos. Tão próximos do futuro rei, e tão influentes junto a ele, que Manuel I, considerando que lhe lançavam uma sombra sobre a relação com o filho, afastou-os do serviço. O orgulhoso Martim Afonso, que contava apenas 17 anos, mas já mostrava um carácter fantasioso e opiniático, segundo um testemunho, optou em resposta nada menos do que pelo exílio. Foi viver na Espanha, onde a sorte continuou a favorecê-lo. Durante algum tempo viveu em Salamanca, vindo a casar com a filha de um nobre local, Ana Pimentel. Como soldado, pôs-se a serviço de Carlos V, o Habsburgo que não apenas detinha as coroas da Espanha e da Áustria, mas também era o titular do Sacro Império Romano-Germânico, condição que, entre outras ninharias, lhe dava direito à Holanda, a algumas cidades italianas e aos vários Estados alemães. Martim Afonso combateu ao lado dos espanhóis de Carlos V em uma de suas várias guerras contra a França de Francisco I. E agradou, a julgar pelo que ele próprio deixou escrito, num curto texto autobiográfico, a Brevíssima e Sumária Relação de sua vida. Ali, afirma que Carlos V elogiou-o em público, e pediu-lhe que permanecesse em seu serviço. Afonso respondeu que muito lhe honrava a deferência do rei espanhol, aliás, imperador, como era chamado, mas que tinha outro rei por seu senhor, alguém com quem se criara e que por outro nenhum deixaria. Ele se referia a João III, o amigo de infância, apenas dois anos mais novo, e agora já alçado ao trono português. Manuel I morrera em 1521. João, embora não tão de imediato, chamou Afonso de volta. Afonso acedeu à convocação. João III é o rei que vai desencadear a, digamos, Operação Brasil. E é esta a primeira missão de vulto que incumbirá ao velho companheiro. No reinado de Manuel I, o interesse de Portugal fixara-se em outras partes, ou outra parte. Quase com exclusividade estivera voltado para a Índia, cujas especiarias lhe propiciavam um rendoso comércio. O governo de Lisboa dignava-se agora a olhar para as terras descobertas a ocidente pelo motivo de sempre: a cobiça, o brilho do ouro. Operação Brasil? Antes, seria Operação Sul do Brasil. Ou, com mais amplitude, Operação Cone Sul, para usar nomenclatura revista e actualizada. Ou, para ir directo ao ponto, Operação Prata. Eis o que interessava: o rio da Prata». In Roberto Pompeu de Toledo, A Capital da Solidão, 2003, Editora Objectiva, Prisa Edições, 2012, ISBN 978-853-900-370-9.

Cortesia EObjectiva/PrisaE/JDACT