sábado, 16 de julho de 2016

Ernestina. Rentes de Carvalho. «Não invento nem alindo. Era assim na vida dos meus passados e era assim ainda na minha meninice. Costumes brandos, mas não de todo desinteressados»

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«(…) Os vendavais, esses eram repentinos. Na violência do seu sopro adivinhava-se o poder de espíritos malignos, determinados a arrasar tudo. E aquela gente, que vivia ali sem capela, nem sequer umas alminhas, só com a protecção de algum santo de calendário e das medalhas penduradas nos rosários, corria a recolher os animais, agachava-se em torno da lareira a rezar para que o Senhor se compadecesse. Vida de medo. O avô, ouvi-o depois às suas irmãs, já de pequeno não era de rezas. Resmoneava com os outros, por temor de que lhe assentassem algum tabefe se mostrasse falta de respeito, mas assim que se fez rapaz deixou de rezar e não haveria força que lhe mudasse a ideia.
A caça, as raparigas e os bailes, nessa ordem, eram a sua paixão. Nenhuma distância lhe parecia grande, nenhum esforço o cansava, e se havia festa numa aldeia da redondeza, deitava um saco de trigo aos ombros, cinquenta quilos, e ia incansável ladeira abaixo, ladeira acima, a cantarolar como era seu hábito. Até Carviçais, uma caminhada de três horas. Para Estevais quatro. A Lagoaça sete. A Mós também sere. O saco de trigo entregava-o ele na taberna, em penhor das rodadas de vinho e dos maços de cigarros, para retribuir as cortesias dos amigos, parentes e conhecidos. De todos, afinal. Porque as aldeias, chegadas ou longínquas, eram uma teia de laços de sangue e amizades.
Nesse tempo em que o correio era luxo caro, pedia-se aos almocreves que dessem recomendações aos parentes de Chacim, a dia e meio de jornada, que se visitavam quando muito uma vez por geração. Batia à porta gente desconhecida, vizinhos de primos de Bemposta que iam de passagem com gado para as feiras de Moncorvo, de Trancoso, da Pesqueira, e a quem era natural que se desse ceia e dormida. Recebiam-se ofertas inesperadas: uma bôla de carne, um cesto de doces, um frango, um presunto, um garrafão de vinho. Às veres vindos não se sabia donde, nem de quem, porque tinham passado por tantas mãos que o último portador se embrulhava no recado. Mandavam-se presentes aos santos. Vós ides amanhã à festa de Vila Flor, ó Júlia? Então leva-me estes paninhos e entrega-os lá à Nossa Senhora da Assunção. Não invento nem alindo. Era assim na vida dos meus passados e era assim ainda na minha meninice. Costumes brandos, mas não de todo desinteressados.
Na solidão das serras era preciso ter quem acudisse a um desastre, a uma urgência, à precisão de ir chamar o médico ou buscar um remédio. Não falo do Cabeço, onde as três famílias que lá moravam eram por necessidade como uma família só. Falo de Estevais, a nossa aldeia, onde com festa ou sem ela o meu avô já de moço aparecia quase todos os domingos. Para as caçadas e para o namoro. Sempre de espingarda na mão, algumas vezes com o saco de trigo ao ombro para a despesa. Esse trigo ia-o ele tirando pouco a pouco da tulha paternal, às escondidas, ajudado pelas irmãs, que eram mais novas e lhe queriam tanto bem que, contaram-mo elas um dia, sorrindo enternecidas, tudo o que ele fazia se lhe desculpava, porque não se lhe conhecia uma maldade que fosse. E se era como era, de verdade a culpa cabia ao pai, homem forreta, de poucas graças, que fazia gosto em trazer a família de rédea curta». In José Rentes de Carvalho, Ernestina, 2001, Quetzal Editores, Lisboa, 2009, 2014, ISBN 978-989-722-171-2. 
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