terça-feira, 5 de julho de 2016

O Diabo é um Homem Bom. Ana Miranda. «Falta-me o tempo. E mesmo se tivesse ainda direito a uma segunda vida, ou a uma terceira, não seria suficiente, não haveria espaço nem palavras em quantidade para dizer tanto mal»

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«Abram bem os olhos. Leiam devagar e com atenção o que vou contar. Não tenham a ilusão de tudo compreender antes de chegar ao fim. Acima de tudo, por caridade, não voltem atrás. Sei que se olharem duas vezes a mesma página nada será igual. É assim. Eu própria se tivesse de contar duas vezes esta mesma história não seria igual. Nem a história nem eu, entenda-se. Se quisesse dizer-vos porquê, isso agora, levaria demasiado tempo e exigiria demasiadas palavras. Para ser totalmente honesta, o meu principal problema é esse. Falta-me o tempo. E mesmo se tivesse ainda direito a uma segunda vida, ou a uma terceira, não seria suficiente, não haveria espaço nem palavras em quantidade para dizer tanto mal. Sim, é disso que vos quero falar. A morte adianta-se todos os dias um bocadinho, até nos encurralar num momento qualquer, num sítio qualquer, numa qualquer situação. São ínfimos os que sabem com antecedência quando vão morrer. Eu faço parte desse pequeno punhado de privilegiados».

«Em forma de comunicado, estas palavras pareciam ter estado sempre ali, à espera de se revelarem. Foi um encontro fortuito, no subsolo do primeiro apartamento que aluguei quando cheguei a Paris. Era um volume solitário, todo mofo e pó, numa caixa de madeira de articulações lassas, visivelmente destinada a viajar, dada a perfeição dos nós que a apertava. Numa das faces pendia agrafada a seguinte mensagem, abrir com cuidado. Um convite à tentação, que confirma o meu pior defeito ou virtude, quem pode julgar, a curiosidade. No interior, mais de uma centena de páginas artesanalmente compostas formavam um livro. Esta descoberta ocorreu em Dezembro de 2007. O volume, sem título, assinado por Laura Paraíso, não tem data, mas quem o copiou, JMC, deixou anotado na primeira página Agosto 2005, A ideologia do terror, o mundo vive no medo. Dois anos separam estes dois acontecimentos, e são ainda muitas as perguntas que me assaltam o espírito sobre a identidade de Laura e de JMC, e sobre o enigma dessas linhas. As tentativas feitas para chegar aos seus criadores esbarraram num espesso mistério de ficheiros, ilegíveis e amarelecidos, da complexa administração do Estado. Desisti dessa busca, mas não abdico da procura do segundo manuscrito, muito mais pelo desejo de me apoderar dessas novas palavras, que pelos segredos promissos desse futuro incerto. Por agora, deixo-vos aqui o livro de Laura, resgatado da teia da web por JMC. In Paris, 28 de Maio de 2008, A. Miranda

«Abram bem os olhos. Leiam devagar e com atenção o que vou contar. Não tenham a ilusão de tudo compreender, antes de chegar ao fim. Acima de tudo, por caridade, não voltem atrás. Sei que, se olharem duas vezes a mesma página, nada será igual. É assim. Eu própria se tivesse de contar duas vezes esta mesma história não seria igual. Nem a história, nem eu, entenda-se. Se quisesse dizer-vos porquê, isso agora, levaria demasiado tempo e exigiria demasiadas palavras. Para ser totalmente honesta, o meu principal problema é esse. Falta-me o tempo. E mesmo se tivesse ainda direito a uma segunda vida, ou a uma terceira, não seria suficiente, não haveria espaço nem palavras em quantidade para dizer tanto mal. Sim, é disso que vos quero falar. A morte adianta-se todos os dias um bocadinho, até nos encurralar num momento qualquer, num sítio qualquer, numa qualquer situação. São ínfimos os que sabem com antecedência quando vão morrer. Eu faço parte desse pequeno punhado de privilegiados. Sei que estou perto da eternidade porque sinto o silêncio do fim. Sem silêncio não pode haver eternidade. A morte avança dissimulada, sinto-a rondar a casa onde fui feliz com Jean. É Primavera. O perfume do lilás, que ele plantou quando aqui chegámos, entra pela janela aberta do nosso quarto. Duras, hoje doem-me as cruzes como pedra. O meu corpo já não suporta a cama. O meu corpo já não suporta nada, desde que ela nos separou. Não, não foi ela que decidiu. A morte esperava por ele, mas ele antecipou-se. Entregou-se antes do tempo. Não pensem que foi uma rendição, não ele. Jean nunca capitularia diante das ameaças da morte. Ele tinha apenas os dias contados, como de resto, qualquer um de nós. Ele ganhou porque lhe trocou as voltas. A morte é zarolha e como eu, uma velha ressequida em fase terminal. Mas, também eu hei-de ser capaz de trocar-lhe as voltas. Vou despachar-me. Deixem que vos conte.
O Mal não tem regra nem medida. Surge e toma os espaços vazios da nossa alma. Mas só agora o sei. Tudo é possível, garanto-vos. Eu vivia de fundamentos escritos com o sangue invisível dos outros, e alimentava uma certa imagem do mundo, essa mesma que todos vemos nos jornais da manhã e nos blocos noticiosos das televisões. Quem saberia que, subliminarmente, todos os mortos com quem de perto ou de longe cruzei o meu olhar, viriam ocupar-me a memória para sempre, com a pretensão, julgo eu, de serem vingados de tanta tirania. A realidade construída pelos Media chama-se actualidade, mas real é apenas uma certa parte do seu conteúdo, só que, então, eu também não sabia. Outros, como eu, tomaram por verdade irrefutável tudo o que vinha escrito nos jornais e ainda o que era contado nas rádios e nas televisões. Inicialmente manter-me a par dos acontecimentos que influenciavam o mundo parecia-me uma abertura necessária para melhor o compreender, e tornou-se um hábito. Com o tempo, veio uma certa dependência, e não tardou que fosse habitada por uma permanente obsessão de querer tudo saber, uma bulimia incipiente que se agravou e favoreceu o despertar de uma nova moral, aferrada no desejo de revolta e de vingança contra tanta vilania». In Ana Miranda, O Diabo é um Homem Bom, Editora Chiado, colecção Viagens na Ficção, 2012, ISBN 978-989-697-552-4.

Cortesia de EChiado/JDACT