sexta-feira, 15 de julho de 2016

Os Pecados da Rainha Santa Isabel. António Cândido Franco. «Um fio liga as três mulheres: o sacrifício em Isabel, a morte em Inês, a abdicação em Leonor. Tão contraditória é a santidade que procurá-la é o primeiro passo para a perder»

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«(…) Isabel de Aragão é por isso uma excepção na cultura bisonha do primeiro Portugal durimínio. Ela traz nos dedos a luz doirada do Oriente, nos olhos as águas mansas e azuis do Mediterrâneo, na pele o almíscar dos magos bíblicos, nos lábios as palavras cultas da civilização. Também na fronte se estampavam as alturas nevadas e impassíveis dos Pirenéus. A sua personalidade constrói-se à parte de tudo aquilo que nos é familiar. Repele com horror a paixão da carne que encontramos em Dinis e em Pedro; abdomina a violência sanguinária e a cobiça desmedida de mando e de riqueza que o quarto Afonso mostra. No cadinho do seu coração aragonês não se consome nem pitada daquele preparado de volúpia e concupiscência que fez a atracção fatal de Inês e a ardência tórrida da grande Leonor. O seu peito alvo de pomba não acrisolou qualquer apetite núbil. Enquanto menina, na idade em que se toma gosto ao dedo no botão, menos se estimou que se aborreceu, pondo em si, no corpo, um tipo de desgosto e de repugnância que para sempre vedam, nela ou noutra, qualquer luxúria. É pois na aparência Isabel de Aragão de todo alheia ao grande e apaixonado drama de Amor que se representou no Portugal do século XIV. E no entanto Isabel faz parte deste tempo como a Lua nova, mesmo ausente, faz parte do céu dos astros. Está lá, mesmo que ninguém dê por ela. Assim Isabel é a esposa de Dinis, a mãe do quarto Afonso e a avó de Pedro. Foi ela a fundadora de Santa Clara, na margem esquerda do Mondego, onde a tragédia da Morte de Inês depois se desenrolou em acro único. Três ou quatro décadas, não mais, separam a instalação de Isabel de Aragão na nesga de areia do Mondego e a decapitação de Inês no mesmo lugar. Que peregrina relação pode ligar estes dois factos e estas duas mulheres, pergunto-me. Basta porém o liame para tornar Isabel de Aragão um elo intocável da história de Pedro.
Mas há mais. Foi Isabel de Aragão que habitou pela vez primeira a despretensiosa casinha de pedra calcária da Serra-del-Rei, a montante da Atouguia, onde depois do desaparecimento da vestal de Alenquer, Pedro e Inês, encontraram o Éden terreal numa finisterra só por eles povoada. Esse mesmo espaço será depois da tragédia de Santa Clara o refrigério desejado pela agónica solidão de Pedro. O único bem que ao infeliz restava depois do cataclismo inesperado de Coimbra, que bastou para lhe turvar a clareza e lhe roubar para sempre parte da mioleira, fazendo dele um contumaz da justiça, era a saudade. Compreende-se. Não é a recordação o único conforto real do homem esbulhado do Paraíso ou da Infância? Está visto que sim. Talvez por isso a história de amor entre Fernando e Leonor não se entenda sem esse mesmo espaço finistérrico.
Dinis e Isabel, Inês e Pedro, Fernando e Leonor três gerações, três casais, de avós a neto, que se substituem na Atouguia, ao pé da ilha de Peniche, num espaço que parece estar à deriva no coração do mar. O caso de Inês é trágico, com as arcas de Alcobaça ali tão perto, mas o de Isabel, Primavera de tudo, é inocente, como o de Leonor é triste e ardente, como o fim tem de ser. Um fio liga as três mulheres: o sacrifício em Isabel, a morte em Inês, a abdicação em Leonor. Isabel de Aragão, além de sexta rainha de Portugal, foi canonizada pela Igreja no século XVII, muitos séculos depois de viver. É pois duma santa que falamos, uma santa do calendário romano. Mas as voltas que o mundo dá, para fazer um santo ninguém as entende. Tais meandros são tão incognoscíveis como os mistérios dum céu estrelado. Tão contraditória é a santidade que procurá-la é o primeiro passo para a perder. Os santos não se reconhecem como santos. Que irrisão delambida e que grosseria um santo que ao mundo se apresentasse como santo. Têm razão os que afirmam que o mais verdadeiro e o mais belo dum santo são os seus pecados. E como pecador irremissível se encara sempre um santo autêntico». In António Cândido Franco, Os Pecados da Rainha Santa Isabel, Ésquilo, Lisboa, 2010, ISBN 978-989-809-289-2.

Cortesia de Ésquilo/JDACT