sábado, 2 de julho de 2016

Xeque-mate da Rainha. Elizabeth Fremantle. «Ela saberia exactamente o que funcionaria. Afinal, qualquer uma das plantas que usa para amortecer sua dor poderia matar um homem com a dose certa, um pouco mais disso ou daquilo e estaria resolvido»

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1543. Londres
«O notário cheira a poeira e tinta. Latymer se pergunta porquê, quando um sentido embota, outro fica mais aguçado. Consegue detectar o cheiro de tudo, o forte odor de cerveja no hálito do sujeito, o aroma fermentado do pão assado na cozinha ali em baixo, o fedor de cachorro molhado do spaniel enrolado em frente à lareira. Mas enxerga pouco, o quarto gira e o homem é um vulto escuro inclinado sobre a cama com um sorriso que mais parece uma careta. Ponha sua assinatura aqui, senhor, diz ele, como se falasse com uma criança ou um idiota. Um sopro de violetas o envolve. É Katherine, sua querida, querida Kit. Deixe-me ajudá-lo a se levantar, John, diz ela, enquanto puxa seu corpo para a frente e coloca um travesseiro atrás. Ela o levanta facilmente. Deve ter definhado um bocado nos últimos meses. Não é nenhuma surpresa, dado o caroço em suas entranhas, duro e redondo como uma toranja. O movimento desencadeia algo, uma onda insuportável que sobe por seu corpo forçando-o a dar um grunhido desumano. Meu amor. Katherine acaricia sua testa. Seu toque é sereno. A dor o aferroa mais fundo. Consegue ouvir o tilintar de Katherine preparando uma tintura. A colher brilha em contacto com a luz. O frio do metal toca seus lábios, e um fio líquido faz uma poça em sua boca. O odor argiloso traz de volta a lembrança distante de cavalgadas na floresta e com isso uma tristeza, pois seus dias de cavalgada acabaram. Sua garganta está inchada demais para engolir e ele tem medo de sentir dor novamente. A dor diminuiu, mas permanece, como o notário que se apoia alternadamente em um pé depois no outro, envergonhado. Latymer se pergunta porque o homem não está mais acostumado a esse tipo de coisa, uma vez que testamentos são seu meio de vida. Katherine alisa sua garganta e a tintura desce. Logo vai fazer efeito. Sua esposa tem um dom para remédios. Ele pensou em que tipo de poção ela poderia preparar para libertá-lo daquela carcaça inútil. Ela saberia exactamente o que funcionaria. Afinal, qualquer uma das plantas que usa para amortecer sua dor poderia matar um homem com a dose certa, um pouco mais disso ou daquilo e estaria resolvido.
Mas como pedir isso a ela? Uma pena é colocada entre seus dedos e sua mão é levada aos papéis para que possa assinar. Seu rabisco fará de Katherine uma mulher de posses consideráveis. Ele espera que não traga a maldição dos caçadores de fortuna à sua porta. Ela ainda é bem jovem, com pouco mais de trinta anos, e o carisma que o fez se apaixonar tão profundamente, já um velho viúvo, paira em volta dela como um halo. Nunca teve a beleza ordinária das esposas dos outros homens. Não, seus atractivos complexos floresceram com a idade. Mas Katherine é astuta demais para se deixar levar por um sedutor eloquente de olho na fortuna de uma viúva. Ele deve demais a ela. Quando pensa em como ela sofreu em seu nome, tem vontade de chorar, mas seu corpo é incapaz disso. Não lhe deixou o castelo de Snape, sua sede em Yorkshire; ela não ia querê-lo. Ficaria feliz, dissera muitas vezes, se nunca mais tivesse que pisar lá. Snape irá para o jovem John. O filho de Latymer não se tornou bem o homem que se esperava e ele se perguntara com frequência que tipo de filho poderia ter com Katherine. Mas esse pensamento é sempre obscurecido pela memória do bebé morto, a criança maldita que fora concebida quando os rebeldes católicos saquearam Snape. Ele não suporta imaginar como aquele bebé veio a existir, produzido por ninguém menos que Murgatroyd, que costumava levar para caçar lebres quando criança. Era um doce rapaz, não mostrava nenhum sinal do bruto que se tornaria. Latymer amaldiçoa o dia em que deixou sua jovem esposa sozinha com seus filhos para ir à corte pedir perdão ao rei, amaldiçoa antes de tudo a fraqueza que o fez se envolver com os rebeldes. Seis anos se passaram desde então, mas os eventos daquela época estão gravados em sua família como palavras em uma lápide. Katherine ajeita as cobertas, cantarolando; é uma cantiga que ele não reconhece, ou não lembra. Um repente de amor o invade. Seu casamento foi por amor, para ele, ao menos. Mas ele não fez o que maridos devem fazer: não a protegeu. Katherine nunca falou a respeito. Queria que ela tivesse gritado e brigado com ele, que o tivesse odiado, culpado. Mas ela permaneceu equilibrada e contida, como se nada tivesse mudado. E sua barriga cresceu, insultando-o. Somente quando o bebé chegou e morreu dentro de uma hora, ele viu lágrimas marcarem seu rosto. Mesmo então, entretanto, nada foi dito. Esse tumor, devorando-o devagar, é sua punição, e tudo que ele pode fazer em reparação é deixá-la rica. Como pode lhe pedir algo mais? Se ela pudesse habitar seu corpo arruinado por um instante sequer, faria seu desejo sem questionar. Seria um acto de misericórdia, e certamente não há pecado nisso. Ela está à porta, despedindo-se do notário, depois flutua de volta para sentar-se ao lado dele, tira a touca e deixa-a ao pé da cama, massageando as têmporas com as pontas dos dedos e sacudindo o cabelo como numa tela de Ticiano.
Seu perfume de flores secas chega até ele, que deseja afundar a cabeça nesses cabelos como costumava fazer. Pegando um livro, ela começa a ler em voz baixa, o latim deslizando facilmente pela língua. É Erasmo. O latim dele está enferrujado demais para que compreenda; devia se lembrar do livro, mas não consegue. Ela sempre fora mais educada que ele, embora fingisse o contrário, nunca fora de se gabar. Uma batida tímida na porta os interrompe. É Meg, de mãos dadas com aquela criada desengonçada, cujo nome lhe escapa. Pobre pequenina, desde que Murgatroyd e seus homens vieram, ficou agitada como um potro, o que o fez pensar no que fora feito a ela também. O pequeno spaniel desperta, abana o rabo e agita-se freneticamente aos pés das mulheres. Pai, murmura Meg, dando um beijo primaveril em sua testa. Como está? Ele levanta a mão, um grande amontoado de gravetos mortos, e coloca-a sobre a mão jovem e macia dela, tentando sorrir. Meg se dirige a Katherine, dizendo: mãe, Huicke está aqui. Dot, Katherine diz à criada, faça o doutor entrar. Sim, senhora. Ela vai em direcção à porta, as saias roçando. E Dot…, completa Katherine. A criada pára à porta. … Peça a um dos rapazes para trazer mais lenha para a lareira. Estamos queimando o último tronco. A garota assente, fazendo uma reverência. Hoje é aniversário de Meg, John, diz Katherine. Ela faz dezassete anos. Ele se sente impedido, quer vê-la direito, ler a expressão em seus olhos castanhos, mas os detalhes estão borrados. Minha pequena Margaret Neville, uma mulher…, dezassete anos. Sua voz é um grunhido. Alguém vai querer se casar com você. Um belo jovem. A noção de que nunca conhecerá o marido da filha atinge-o como uma chapada na cara. Meg enxuga os olhos com as mãos». In Elizabeth Fremantle, Xeque-mate da Rainha, 2013, Editora Paralela, Editora Schwarcz, 2016, ISBN 978-858-439-003-8.

Cortesia de EParalele/ESchwarcz/JDACT