terça-feira, 12 de julho de 2016

Onde Vais Isabel? Maria Helena Ventura. «E a infanta dona Isabel? Pois deve estar ainda recolhida, bom homem. Sossegai primeiro vossa mula que parece cansada de correr. Quero ver a aia dela mais velha, antes que saia»

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«(…) Ali fico. De um lado travado pelos guardas, depois pelo povo que avança do coração do burgo, hoje com batimento mais forte. Nem os avisos dos arautos, dias antes, impediram a intensa animação que hoje ameaça estrangular as ruas. Quarta Feira de Cinzas... Negadas as festas profanas... À medida das enchentes como água a extravasar dos regos, tangem os sinos redobrados, a ressoar no caminho manchado de térreas tonalidades, pisado por uma massa humana de diferentes raças e credos. Volto à rua del Bisbe. Ainda em cima do burro avisto o movimento sob as arcadas dos paços, destacados das casas térreas arrumadas umas sobre as outras. Marinheiros, comerciantes do Midi, ricos hombres, caballeros, hidalgos de todas as partes dos reinos de Aragão e Catalunha, misturam-se com servos a carregar a bagagem dos amos à procura de hospedagem. Romeiros também não faltam. Venceram a custo os caminhos desde o Rossilhão até Compostela, e feita a peregrinação tentam a sorte na cidade, sem ânimo para o regresso. Não há vão de porta livre, todos servem de acomodação aos mais pobres. Por aqui passo o tempo, a conduzir o animal rente às paredes negras, desejando a luz de uma praça para respirar melhor. Meu tio deve andar às voltas por outras vielas estreitas como riscos, a ver se encontra caminho desimpedido. Rapidez não trará. Impossível o animal romper ligeiro estas ondas de gente. Depois há de entender por mais seguro patear com cuidado o chão ainda húmido, onde o sol jamais conseguirá entrar.
Alcançada a parede da catedral que deixei há pouco apeio-me, a fazer o varrimento ocular dos espaços em redor. À minha esquerda, quase ao fundo da rua, um moço de estrebaria esfrega com vigor o lombo de um cavalo árabe, de pelo negro azeviche. Há mais dois à espera de vez, cabeças tordilho e baio estendidas sobre as portadas da cavalariça. Pela adivinhada esbeltez só podem ser pertença de algum nobre, talvez até do próprio rei Pedro III de Aragão. O moço parece ter pressa já o dia se abre em toda a plenitude, o sol a derramar reflexos do mais puro ouro no tom enegrecido dos muros, nos costados do casario, nas torres da catedral. Onze de Fevereiro, do ano do Senhor de 1282. Não me esqueci dos pormenores da data, desde a tarde em que Ángel, o emissor da mensagem, fixava os olhos na orla da floresta, debruçado no adarve do castelo de Monzón. Notava-lhe um estranho temor pelo futuro dos moradores, desta e de outras fortalezas templárias, quando lembrava as alianças entre França e Navarra, a vontade de Filipe III em unificar reinos vizinhos sob a mesma coroa. Para isso o rei dos franceses queria enfraquecer outros poderes que lhe barravam o caminho, até a poderosa ordem do Templo. E meu tio diluía as apreensões na esperança de que um acontecimento próximo, pudesse inverter o curso dos ventos.
Na altura não entendi que falava do casamento de dona iIsabel com o rei de Portugal, mas nada lhe perguntei. Habituado a confiar nele, na grande sabedoria que lhe granjeara respeito aqui e além Pirenéus, comungava apenas do temor e da alegria que seus olhos transmitiam, e tanto me bastava. Mas sentia que era grave, isso sentia. E nesse dia prometi-me descobrir que estranhos conflitos interiores o consumiam. Juan acaba de chegar a este extremo da catedral, sem me dar atenção. Decepcionado, claro, com a nova barreira de cavaleiros perfilados em linha em toda a largura da rua. Agita-se em cima da mula, angustiado, com pressa de passar a mensagem que o traz a Barcelona. Mas como não costuma dar abrigo a contrariedades, em segundos aninha a viola entre o traje puído de estamenha e o dorso do animal, para apelar ao jeito cortês de antigo monge. Começa então a discorrer sobre os nomes sonantes da sua linhagem, para introduzir a urgência da missão, num discurso profundo de amplos gestos.
Lá consegue convencer os guardas. Nessa altura aproveito a maré de sorte e monto também, transformando com ele as últimas braças do percurso no fulgor de um raio. Já no pátio, Juan puxa com vigor as rédeas da besta, ensaiando meia volta em frente do rapaz confundido com o galope desabrido. Ainda o animal se agita para soltar o freio já o cavaleiro, a deitar os bofes pela boca, desfere perguntas sem a cortesia de uma saudação:

E a infanta dona Isabel?
Pois deve estar ainda recolhida, bom homem. Sossegai primeiro vossa mula que parece cansada de correr.
Quero ver a aia dela mais velha, antes que saia
E que posso eu fazer um moço de estrebaria?
Vai lá dentro, pede para falar com Soledad, diz-lhe que a espero no vão daquela porta, ao lado da cavalariça
Agora?... Não sei se conseguirei romper pelo paço dentro
Aqui tens, oiro do bom
Mas isto são maravedis dos antigos, uma riqueza…
Vais ou não vais?
É para já, bom senhor, se tomardes atenção ao cavalo. E quem devo anunciar?
Diz-lhe que trago novas urgentes da casa templária de Monzón.

O moço desaparece pelas escadas do pátio interior, a chocalhar as moedas na mão fechada. Aproveito para me apear pela segunda vez, atar a corda do burro a uma pedra, cruzar com destemor o espaço à frente de meu tio, já rente ao cavalo meio escovado». In Maria Helena Ventura, Onde Vais Isabel, Saída de Emergência, 2008, ISBN 978-989-637-034-3.

Cortesia de SdeEmergência/JDACT