quinta-feira, 14 de julho de 2016

As Três Sereias. Irving Wallace. « Nenhum dos sacos de cartas que recebia semanalmente deixava de conter curiosidades provindas de lugares distantes, a de um estudante já licenciado na sua primeira viagem à Índia, relatando como a tribo Baiga…»

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«Era a primeira das cartas que Maud Hayden retirara da pilha da manhã, colocada sobre o mata-borrão da sua secretária. O que a atraíra para ela, admitia timidamente para si mesma, fora a exótica fila de selos a toda a largura da extremidade superior do envelope. Os selos continham uma reprodução do Cavalo Branco, de Gauguin, em verde, vermelho e anil, e as palavras Polinésia Francesa... Via Aérea. Do cimo da sua montanha de anos, Maud achava-se penosamente consciente de que seus prazeres se tornavam cada vez menos visíveis e distintos em cada novo Outono. Os Grandes Prazeres continuavam provocadoramente claros: as suas realizações intelectuais com Adley (ainda respeitado); a sua absorção no trabalho (constante); o filho Marc (que seguia, de certo modo, as pegadas do pai); a sua nora, Claire (doce, encantadora; era difícil supor a existência de outra jovem tão encantadora quanto ela). Os Pequenos Prazeres é que começavam a se tornar tão ilusórios e invisíveis como a juventude. O passeio agradável, efectuado no princípio de cada manhã, ao sol da Califórnia, especialmente quando Adley ainda vivia, era uma celebração consciente do nascimento de cada dia. Agora, recordava-a apenas de sua artrite. A vista, em especial da janela do seu estúdio, no andar superior, da faixa regular da auto-estrada entre Los Angeles e San Francisco, com a praia de Santa Bárbara e as enormes vagas do oceano mais além, fora sempre esteticamente impressionante. Porém, agora, ao contemplar da janela o panorama, via apenas o pontilhado dos automóveis, monstros velozes, e a sua memória aspirava as emanações da gasolina, do lixo apodrecido, e das plantas marinhas, no outro lado da estrada, à beira-mar. O café da manhã constituíra sempre outro dos Pequenos Prazeres, o jornal dobrado, com os seus recitais diários das loucuras e das maravilhas do homem, a suculenta refeição de cereal, ovos, bacon, batatas, café fumegante bem açucarado, torradas com bastante manteiga. Agora, os convidados ao café da manhã eram em número reduzido devido à conversa sinistra sobre o elevado grau de colesterol e as dietas com baixa percentagem de gorduras e todas as coisas, e expressões correntes (leite desnatado, margarina, brócolos, pudins de arroz) da Idade do Infortúnio. E por fim, entre os Pequenos Prazeres de cada manhã, contava-se a pilha do correio, e este prazer, como Maud compreendia, continuava constante, ainda não erodido pela sua montanha de anos. O mais interessante para Maud Hayden, no que se referia à correspondência, era que esta lhe proporcionava novas alegrias todas as manhãs, ou assim parecia. Era uma correspondente prolífica. Os seus colegas antropólogos e os seus discípulos eram também correspondentes infatigáveis. Além disso, Maud parecia também um pequeno oráculo, ao qual muitos se dirigiam com seus enigmas, esperanças e interrogações. Nenhum dos sacos de cartas que recebia semanalmente deixava de conter curiosidades provindas de lugares distantes, a de um estudante já licenciado na sua primeira viagem à Índia, relatando como a tribo Baiga se apegava de novo ao solo, após cada tremor de terra; a de um eminente antropólogo francês, no Japão, que apurara que o povo de Aino não considerava uma noiva verdadeiramente casada antes que ela desse à luz, e que perguntara se era isto exactamente o que Maud descobrira entre os siameses; a da rede nova-iorquina de televisão, que oferecia uma modesta soma se Maud verificasse a autenticidade da seguinte informação, que seria utilizada num documentário sobre a Nova Bretanha: um nativo comprara a noiva ao tio da jovem, e depois, ao nascer um filho, a criança fora colocada sobre uma fogueira para se assegurarem do seu crescimento. Ao primeiro olhar, o correio desta manhã, com seus segredos encerrados no interior do envelope, parecera menos prometedor. Ao percorrer os vários envelopes, Maud descobrira que, a julgar pelas marcas de correio, as cartas tinham sido remetidas de Nova York, Londres, Kansas City, Houston e de lugares semelhantes, sem qualquer atractivo, até que sua mão se deteve no envelope com os selos que reproduziam o quadro de Gauguin. Compreendeu que ainda conservava o envelope alongado, espesso, amarrotado, entre os dedos curtos e grossos, e então apercebeu-se de que na maioria das vezes, nos últimos anos, o seu hábito de acção directa fora impedido por meditações e divagações de pensamento nubladas por uma vaga compaixão por si mesma. Desgostosa consigo própria, Maud Hayden voltou o longo envelope e, nas costas, encontrou o nome e o endereço do remetente escrito com uma caligrafia europeia ondulante e anacrónica: A. Easterday Hotel Temehami, Rue du Commandant Destremau, Papeete, Taiti. Tentou ligar o nome A. Easterday a um rosto. Quanto ao presente, nada. Em relação ao passado, a sua memória, um eficiente arquivo, recuou no tempo, tantos, tantos..., até que encontrou o rosto com a legenda do nome. A impressão era vaga, descolorida. Fechou os olhos e concentrou-se profundamente; pouco a pouco a impressão tornou-se mais definida.
Alexander Easterday. Papeete, sim. Caminhavam no lado da sombra de uma rua, em direcção da sua loja, Rue Jeanne d'Arc, 147. Era baixo e gordo, atarracado como se tivesse sido comprimido mecanicamente. Nascera em Memel ou Dantzig, ou numa outra cidade qualquer riscada do mapa pelas tropas de assalto nazistas. Tivera muito nomes e passaportes, e no seu caminho, um longo caminho cujo objectivo era a América, como refugiado fora obrigado a deter-se, fixando por fim residência em Taiti, onde se dedicara ao comércio. Declarara ter sido arqueólogo noutros tempos, ter acompanhado diversas expedições alemãs em dias mais felizes e moldara-se ao modelo de Heinrich Schliemann, obstinado e excêntrico escavador de Tróia. Easterday era demasiado mole e desmazelado, demasiado desejoso de agradar e demasiado falto de sorte para representar o papel de Schliemann, pensara então Maud. Alexander Easterday, sim. Conseguia agora vê-lo melhor: chapéu de linho, ridiculamente empoleirado na cabeça; gravata borboleta (nos Mares do Sul), casaco tropical cinzento, amarrotado, cujas calças o ventre saliente alargara. E ainda pormenores mais curiosos: pince-nez alto num nariz longo, três centímetros de bigode, bolsos deformados, cheios de ninharias, notas, cartões de visita. Começava agora a recordar-se com mais nitidez. Passara a tarde a bisbilhotar a loja cheia de artefactos da Polinésia, todos a preços razoáveis, e adquirira um par de castanholas de bambu balinesas, uma clava de guerra, esculpida, das ilhas Marquesas, uma saia de tapa da Samoa, um capacho da ilha de Ellice e uma antiga tigela de madeira de Tonga, a qual servia agora de adorno no aparador da sua sala de estar. Antes de partirem, recordava, ela e Adley, pois quisera que Adley o conhecesse, tinham convidado Easterday para uma refeição no restaurante do terraço do Grande Hotel. O convidado mostrara-se uma enciclopédia no que tocava a informações,iluminara alguns enigmas menores da sua estada de meio ano na Melanésia. Isto passara-se há oito anos, quase nove, quando Marc estava no seu último ano na Universidade (ao jovem desagradava a influência ali de Alfred Krober apenas porque o pai e a mãe idolatravam o mestre)». In Irving Wallace, As Três Sereias, 1964, Livros do Brasil, colecção Dois Mundos, 2000, ISBN 978-972381-025-7.

Cortesia LdoBrasil/JDACT