sexta-feira, 29 de julho de 2016

Ambas as Mãos sobre o Corpo. Maria Teresa Horta. «A resolução, propôs a si própria enquanto arrastava os brincos verdes na palma da mão direita, parecendo esquecida que tinha de sair, sentindo-o bem mais do que o sabendo a esperá-la»

jdact

«(…) Poisou a escova no pequeno armário ou apenas na borda do lavatório onde a água se aquieta, baça. Olha-se e parece não reparar no ruído da porta que dá para o quarto; é no entanto um ruído demasiado agudo para que não o tenha ouvido; todavia, na cara pálida, inexpressiva, nada se modifica, somente o corpo parece ter um pequeno movimento de fuga ao aproximar-se mais do lavatório, quase roçando o frio húmido da pedra. Os cabelos lisos, soltos, são agora nos dedos dele muito mais exactos. Nos ombros os seus cabelos e os dedos dele, nos ombros a arrastarem crispados de pressa os rolos finos das alças para os braços. Os braços caídos, moles, e os olhos fixos na escova azul a afundar-se devagar, sem ruído, na água tépida do lavatório.

O banho
Mergulha o corpo, deixa-o escorregar até aos ombros na água morna. Tem os cabelos presos numa espécie de touca amarelo-escura, da cor do robe turco pendurado nas costas da cadeira de ferro sobre a qual a toalha se encontra. Mergulha o corpo, de uma palidez doentia, que vai tomando a coloração rosada, só levemente rosada, que a temperatura da água lhe empresta. Move as pernas, os braços, escorrega ainda um pouco mais e assenta finalmente a nuca na borda redonda, curva, da banheira branca, leitosa, incrustada no mármore amarelo-torrado. O vapor que se agarra às paredes, embacia os espelhos, que adere aos frascos de sais, frascos grandes de vidro grosso, e à enorme taça dos sabonetes, parece enevoar-lhe os olhos, adensando-se lhe nas pupilas. Quase líquido. (O silêncio tem um limite no seu respirar e no movimento da água a deslizar-lhe no corpo.) As mãos assentes perto do púbis adquirem uma imobilidade modelada na carne. Vê o robe sobre o qual a cor dos seus cabelos tombará pesada, a luz filtrada pelas persianas, vê o tecto, apenas o pedaço do tecto perto da janela a formar o ângulo para o início da parede, a parede suada pelo vapor da água; a janela, vê a janela enorme, os cortinados: não os cortinados, mas antes uma espécie de persiana interna, solta, da cor dos azulejos, dos armários, excepto da cadeira de ferro trabalhado, azul, do lavatório azul, e dos frascos: cor-de-rosa e verdes, num vidro grosso, liso, alguns rugosos, negros ou brancos, também amarelos, e a enorme taça azul onde as cores brilhantes dos sabonetes se submetem umas às outras a ponto de não se poder dizer uma. Vê a pele distendida do corpo: o corpo. Dir-se-ia antes uma estátua jacente. A imobilidade quebrada apenas pelas pálpebras que descem agora a encobrir o olhar: velado. Nada lhe interessa, nem apenas o suficiente para que um músculo se lhe mova no rosto. Será assim? E ela bem sabe, ou somente pressente o erro. Por isso mesmo e porque não encontra a maneira de sair daquele vício, afunda-se nele sem remédio. Nada mais lhe interessa para além da barreira ostensiva do isolamento que constrói, que diariamente constrói contra eles. Os dedos percorrem o corpo, ao de leve, dissolvendo o sabonete rosado na água já leitosa. Estende o braço para o deixar cair perto da taça, a escorregar no amarelo-escuro dos azulejos. De pé no tapete branco, veste o roupão sobre o corpo molhado e, arrancando a touca, sente tombarem pesados os cabelos, num movimento livre, espontâneo. Quieta, demora ainda no corpo e dentro de si a frescura tépida que lhe escorre na pele.

A resolução
A resolução, propôs a si própria enquanto arrastava os brincos verdes na palma da mão direita, parecendo esquecida que tinha de sair, sentindo-o bem mais do que o sabendo a esperá-la, decerto já impaciente, pronto, ansioso por conduzi-la uma vez ainda através de todas aquelas salas repletas de gente, enquanto a adivinhava distante, mole, sob a pressão dura, habitual dos seus dedos, enquanto lhe adivinhava os olhos velados. Indiferente, o sorriso parado, estático: e passava os brincos compridos, flexíveis, da palma fria de uma mão para a outra, imaginando-o perante a recusa, a completa recusa de o seguir, porém demorando cada vez mais os movimentos. O fato branco estendido sobre o cadeirão, o fato branco decotado nas costas; demorando cada vez mais os movimentos, adiando minuto a minuto a resolução a que se propunha, conhecendo de antemão ao que se iria expôr, mas sem coragem, ou antes, sem vontade de o impedir, lassa, indiferente, tudo como se lhe fosse indiferente, porém a náusea, o vómito cravado na garganta mal lhe sinta os dedos a empurrarem-na por entre toda aquela gente, fazendo-a parar ou demorar-se, exausta: detinha-se estonteada, conseguindo finalmente arrancar o braço dormente de sob a pressão firme dos seus dedos, o fato branco direito no corpo, solto nas ancas e no ventre, o fato branco agora sobre o cadeirão e ainda por estrear, como sempre um fato por estrear e ela a demorar-se na resolução já distante, já adiada, os brincos de esmeraldas a tocarem-lhe os ombros nus, todavia neste momento apenas flexíveis entre as palmas macias das suas mãos. Mas prende-os já nos lóbulos pequenos das orelhas, o fato solto nas ancas, sobre o ventre; e lívida, de uma palidez a marcar mais, se possível, o branco do vestido, dirige-se hirta pelo corredor». In Maria Teresa Horta, Ambas as Mãos sobre o Corpo, 1970, Publicações Europa América, Colecção Século XX, 1984, ISBN 978-972-100-090-2.

Cortesia PEAmérica/JDACT