terça-feira, 12 de julho de 2016

O Erotismo. Georges Bataille. «A acção decisiva é o desnudamento. A nudez se opõe ao estado fechado, isto é, ao estado de existência descontínua. É um estado de comunicação que revela a busca de uma continuidade possível do ser para além do voltar-se sobre si mesmo»

jdact e wikipedia

«(…) O que estou tentando através dessa exposição sobre a descontinuidade e a continuidade dos seres ínfimos, engajados nos movimentos da reprodução, é sair da escuridão em que o imenso campo do erotismo sempre esteve mergulhado. Há um segredo do erotismo que neste momento eu me esforço por violar. Seria isto possível sem ir primeiramente ao mais profundo, sem ir ao coração do ser? Tive de reconhecer há pouco que as considerações sobre a reprodução dos seres ínfimos podiam passar por insignificantes, indiferentes. Falta-lhes o sentimento de uma violência elementar que anima, quaisquer que eles sejam, os movimentos do erotismo. Essencialmente, o domínio do erotismo é o domínio da violência, o domínio da violação. Mas reflitamos sobre as passagens da descontinuidade à continuidade dos seres ínfimos. Se nos referimos à significação desses estados para nós, compreendemos que a separação do ser da descontinuidade é sempre a mais violenta. O mais violento para nós é a morte que, precisamente, nos arranca da obstinação que temos de ver durar o ser descontínuo que nós somos. Desanimamos face à ideia de que a individualidade descontínua que está em nós de repente vai acabar. Não podemos assimilar muito simplesmente os movimentos dos animálculos engajados na reprodução aos do nosso coração, mas, por mais ínfimos que sejam estes seres, não podemos pensar que o ser neles se opera sem violência: é, na sua totalidade, o ser elementar que está em jogo é a passagem da descontinuidade à continuidade. Só a violência pode, assim, fazer tudo vir à tona, a violência e a inominável desordem que lhe está ligada! Sem uma violação do ser constituído, que se constitui na descontinuidade, não podemos imaginar a passagem de um estado a um outro essencialmente distinto. Encontramos nas passagens desordenadas dos animálculos engajados na reprodução não só o fundo de violência que nos sufoca no erotismo dos corpos, mas também a revelação do sentido íntimo dessa violência. O que significa o erotismo os corpos senão uma violação do ser dos parceiros, uma violação que confina com a morte, que confina com o assassínio? Toda a concretização do erotismo tem por fim atingir o mais íntimo do ser, no ponto em que o coração nos falta. A passagem do estado normal ao de desejo erótico supõe em nós a dissolução relativa do ser constituído na ordem descontínua. O termo dissolução responde à expressão familiar de vida dissoluta, ligada à actividade erótica. No movimento de dissolução dos seres, a parte masculina tem, em princípio, um papel activo, enquanto a parte feminina é passiva. É essencialmente a parte passiva, feminina, que é dissolvida enquanto ser constituído. Mas para um parceiro masculino a dissolução da parte passiva só tem um sentido: ela prepara uma fusão onde se misturam dois seres que ao final chegam juntos ao mesmo ponto de dissolução. Toda a concretização erótica tem por princípio uma destruição da estrutura do ser fechado que é, no estado normal, um parceiro do jogo.
A acção decisiva é o desnudamento. A nudez se opõe ao estado fechado, isto é, ao estado de existência descontínua. É um estado de comunicação que revela a busca de uma continuidade possível do ser para além do voltar-se sobre si mesmo. Os corpos se abrem para a continuidade através desses canais secretos que nos dão o sentimento da obscenidade. A obscenidade significa a desordem que perturba um estado dos corpos que estão conformes à posse de si, à posse da individualidade durável e afirmada. Há, ao contrário, desapossamento no jogo dos órgãos que se derramam no renovar da fusão, semelhante ao vaivém das ondas que se penetram e se perdem uma na outra. Esse desapossamento é tão completo que no estado de nudez, que o anuncia, e que é o seu emblema, a maior parte dos seres humanos se esconde, mais ainda se a acção erótica, que acaba de desapossá-los, acompanha a nudez. O desnudar-se, visto nas civilizações onde isso tem um sentido pleno, é, quando não um simulacro, pelo menos uma equivalência sem gravidade da imolação. Na Antiguidade, a destituição (ou a destruição) que funda o erotismo era bastante sensível para justificar uma aproximação do acto de amor e do sacrifício. Quando eu falar do erotismo sagrado, que diz respeito à fusão dos seres com um além da realidade imediata, retomarei o sentido do sacrifício. Mas, desde já, insisto no facto de que o parceiro feminino do erotismo aparecia como a vítima, o masculino como o sacrificador, um e outro, durante a consumação, se perdendo na continuidade estabelecida por um acto inicial de destruição.
O que tira em parte o valor dessa comparação é a pouca gravidade da destruição de que estamos falando. Poderíamos dizer apenas que se o elemento de violação, e mesmo de violência, que a constitui, falha, a actividade erótica atinge com mais dificuldade a plenitude. Entretanto, a destruição real, o acto de morrer propriamente dito, não introduziria uma forma de erotismo mais perfeita que a bem vaga equivalência de que falei. O facto de, em seus romances, o marquês de Sade ver no assassínio o ápice da excitação erótica tem somente este sentido: que, levando às últimas consequências o movimento esboçado que descrevi, não nos afastamos necessariamente do erotismo. Há na passagem da atitude normal ao desejo uma fascinação fundamental da morte. O que está em jogo no erotismo é sempre uma dissolução das formas constituídas. Digo: a dissolução dessas formas de vida social, regular, que fundam a ordem descontínua das individualidades definidas que nós somos. Mas no erotismo, menos ainda que na reprodução, a vida descontínua não está condenada, apesar de Sade, a desaparecer: ela está somente posta em questão. Ela deve ser incomodada, perturbada ao máximo. Existe uma busca de continuidade, mas em princípio somente se a continuidade, que só a morte dos seres descontínuos estabeleceria definitivamente, não triunfar. Trata-se de introduzir, no interior de um mundo fundado sobre a descontinuidade, toda a continuidade de que este mundo é susceptível. A aberração de Sade excede essa possibilidade. Ela tenta um pequeno número de seres, e às vezes há os que vão atéa o fim. Mas, para a totalidade dos homens normais, actos definitivos não dão senão a direcção extrema das acções essenciais. Há um terrível excesso do movimento que nos anima: o excesso ilumina o sentido do movimento. Mas isto é para nós apenas um signo monstruoso, a nos lembrar constantemente que a morte, ruptura dessa descontinuidade individual a que a angústia nos prende, se nos propõe como uma verdade mais eminente que a vida». In Georges Bataille, O Erotismo, 1957/1968, tradução de João Bernard Costa, L&PM Editores, 1987, Editora Antígona, Lisboa, 1988, ISBN 978-972 608-018-3.


Cortesia de L&PM/E Antígona/JDACT