sexta-feira, 29 de julho de 2016

Alexandre VI. Volker Reinhardt. «Mesmo que o papa Bórgia e seus parentes mais próximos tenham sido, de facto, rotulados como infractores das leis, sinalizando que elas deveriam ser drasticamente alteradas…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Bórgia, o papa sinistro
«(…) Todos os acontecimentos relatados são verdadeiros, bem como as consequentes reacções dos contemporâneos. Vale a pena, então, contá-los? Desde o início, episódios da vida de Alexandre VI e dos Bórgia foram usados principalmente para acusar ou absolver o papa e, dessa forma, a Igreja de modo geral. É possível confrontar a liberdade de suas actividades sexuais com o sentimento anti-Igreja que impera hoje. Um sumo pontífice que comprovadamente não diz a verdade nas bulas parece ser o melhor argumento contra a pretensão da Igreja em ser infalível nas decisões que concernem à doutrina da fé e da moral. Até hoje, muito menos favoráveis à verdade histórica como essas declarações carregadas de emoção são também as não raras tentativas de reabilitar Alexandre VI, ou seja, banalizar os acontecimentos que foram considerados instigantes por seus contemporâneos, como se fossem pura e simples invenção de seus numerosos inimigos. Uma lavagem assim só pode ser realizada por meio de uma variedade de manobras para encobrir e distorcer os factos.
Condenar ou absolver não são tarefas do historiador. Se o reinado do papa Bórgia deve ser considerado castigo de Deus para salvar a Igreja do declínio e, dessa forma, servir como impulso para a renovação interior; ou, como vê Maquiavel, uma prova de que a religião nada mais é do que um meio inventado pelo homem para exercer seu domínio; depende da fé e da crença de cada um. Todos são livres para considerá-lo desta ou daquela maneira. Mas esses juízos de valores devem ser separados rigorosamente de uma história séria de Alexandre VI. E quaisquer que sejam as conclusões tiradas pelo leitor, ele terá sido previamente advertido de todos os paralelos generalizados. Embora Alexandre VI tenha sido o sumo pontífice da Igreja de 1492 a 1502, ele não era a Igreja. Ao contrário: não foram poucos os prelados e cardeais que, de certa forma, colocaram em questão sua legitimidade como sucessor de Pedro.
Além disso, eles desenvolveram conceitos de um papado alternativo que pouco tinha em comum com as ideias de Alexandre VI. Apesar disso, o momento imediatamente após a sua morte não era propício à Reforma. Mesmo que o papa Bórgia e seus parentes mais próximos tenham sido, de facto, rotulados como infractores das leis, sinalizando que elas deveriam ser drasticamente alteradas, isso só aconteceu depois de meados do século XVI. O pontificado de Alexandre VI não deve ser nem glorificado nem polemizado. Fascina pelo facto de o papa ter violado cada vez mais as regras, chegando ao ponto de pisoteá-las. Essa aberração não se instaurou imediatamente. Na primeira metade do pontificado, foram mais evidentes laços com normas tradicionais e sua gradativa expansão, até que, nos últimos cinco anos, as quebras de tabu se tornaram rotineiras. Portanto, só se pode entender a particular dinâmica do domínio dos Bórgia e, por fim, sua consequente legalidade própria, comparando-a com pontificados anteriores, ou seja, é importante mencionar como e por que outros papas avançaram por caminhos cujos limites Alexandre VI posteriormente extrapolou.
Esse desvio parcial de normas não significou, contudo, normalização. Ao contrário: a percepção das transformações anteriormente consumadas, cujos resultados este papa assumiu como costumes estabelecidos da cúria, deve servir para aguçar a visão de onde e por que aconteciam as transgressões já observadas com perplexidade e incredulidade pelos contemporâneos.
O reinado de Alexandre VI, assim contemplado, pode ser interpretado como uma má lição sobre como exercer o poder para culminar, no final, com a perda desse poder. E mostra como a má administração de um rico capital financeiro e político pode levar à ruína. Trata-se aqui tanto da destruição de sistemas alheios como da autodestruição involuntária. Em todas as singularidades, a história de Alexandre VI e dos Bórgia apresenta, portanto, semelhanças com as épocas posteriores e também com os tempos actuais. Não existindo essa ponte estreita entre os séculos, por que então se ocupar com o passado? É claro que os contemporâneos dos Bórgia eram, muitas vezes, demasiadamente parciais. Seus interesses estavam em jogo. Esses interesses eram lesados frequentemente de forma irreparável pelas ambições expansionistas de Alexandre VI em benefício de sua família. Esse pontifex maximus despertou o ódio como nenhum de seus antecessores ou sucessores. Mas o terreno fértil da raiva e do medo é propício também ao surgimento dos mitos. Eles tornam-se ainda mais facilmente verossímeis, já que depois de tantas ambiguidades, o papa está completamente desacreditado e, por isso, é capaz de tudo. A descoberta do mito dos Bórgia por meio da investigação histórica é, portanto, um passo à frente no longo e sinuoso caminho que leva a um destino longínquo: a verdade histórica». In Volker Reinhardt, Alexandre VI, Bórgia, o papa sinistro, 2011, Editora Europa, 2012, ISBN 978-857-960-127-9.

Cortesia EEuropa/JDACT