sexta-feira, 24 de agosto de 2018

A Conspiração do rei James. Phillip Depoy. «Que é que diz?, sussurrou Lively, quase sem emitir som algum. Vagando pelo mundo como carrascos de Deus. Marbury pôs o pedaço de papel rasgado na escrivaninha de Harrison»

jdact e wikipedia

Cambridge, Inglaterra
«(…) Segundo no comando dos tradutores, ele ocupava uma posição mais de secretário que de qualquer outra coisa. Diante de tal cena, ele parecia mais fascinado do que revoltado. Seu casaco simples, cor de folha morta, parecia ter sido lavado com tanto vigor que talvez até tivesse sentido dor. Apontou a complicada cruz de espinheira no pescoço do morto. Creio que aquela seja a cruz de Harrison, sussurrou Marbury. E aquele, com a máxima certeza, é o colete de Harrison, continuou Spaulding, frio como uma pedra. Não havia dúvida sobre quem era o morto. O ministro protestante apoiou-se na escrivaninha e concentrou-se na respiração. Observou em silêncio os outros concordarem entre si sobre os detalhes das conclusões que haviam tirado. Como foi, começou Marbury a perguntar devagar a Lively, que o senhor encontrou este horror a esta hora da noite? O meu entusiasmo atraiu-me até aqui, apressou-se a responder o outro. Estava ávido para trabalhar em minhas novas páginas... Elas exercem tamanha atracção sobre mim que o senhor nem pode imaginar. É, mas o que não preciso imaginar, declarou o pastor com cuidado, é a raiva que Harrison teria demonstrado se soubesse que o senhor andava olhando o trabalho. O sujeito era dado a ataques de fúria. Todos sabemos disso. Talvez estivesse aqui, os senhores tivessem discutido, ele o tenha atacado... Lively foi interrompido antes de começar a responder. Precisamos avisar o vigia nocturno imediatamente, exigiu Spaulding. O senhor é um homem de letras, Spaulding, e não saberia como proceder em assuntos deste tipo, respondeu Marbury, mal escondendo o tom de zombaria, e nossos policiais aqui em Cambridge são todos, até ao último, bastante inúteis.
Permita-me cuidar deste caso de outro jeito. Revoltante, guinchou o outro. Não devemos deixar que isso aconteça... Eu já pensei num método para investigar este horror, respondeu o pastor num tom tranquilizante, quase hipnótico. Mas... Marbury voltou-se logo para o grupo e ergueu a mão. Com o seu perdão, cavalheiros, eu sugiro que avaliemos tudo por um instante antes de falarmos mais. Primeiramente, o nosso dever cristão obriga-nos a oferecer, cada um de nós, uma prece em silêncio pelo nosso colega Harrison. Viu cada rosto vivo registar o seu próprio tipo de religiosidade instantânea. Olhos fecharam-se, bocas mexeram-se; vozes sussurraram. Ele usou o momento de silêncio para dar outra olhada no cadáver e tentou examiná-lo com mais atenção. O sangue no corpo não secara, mas não escorria. Quase não havia mancha no chão, na escrivaninha ou na cadeira próxima do morto.
O colete mostrava vários lugares rasgados, dois encharcados de sangue, mas era um sangue viscoso, não estava vazando, nem seco. Poderia Harrison haver sido morto noutro lugar e depois trazido para o salão? Após um momento, obrigou-se a tornar a olhar a devastação que era o rosto. Rezou, então, para que o amigo já estivesse morto antes de ser mutilado. Mas, ao terminar a prece, notou mais alguma coisa. Agora, então, quebrou o silêncio no tom controlado de um homem de negócios, peço aos senhores que não falem do incidente. Não o discutamos com ninguém fora destas paredes enquanto não soubermos o que aconteceu. O trabalho dos senhores é demasiado sagrado, demasiado vital, para ser destruído por este acontecimento. Talvez as minhas palavras pareçam frias, mas creio que expressem o interesse maior da nossa erudição e de nosso rei. Afinal, este salão é um lugar de aprendizagem ou um matadouro?
O académico mais velho do grupo pigarreou com barulho. Era o Lawrence Chaderton, um estudioso de hebraico, em termos amistosos, com muitos dos notáveis rabinos da Inglaterra. Irradiava a profunda calma de um homem com total confiança sobre o lugar que ocupava neste mundo, e no próximo. Tinha o casaco simples e negro, abotoado, quase chegando ao pescoço. Cabeça descoberta, os cabelos brancos emitiam raios e faíscas. O homem que fez isso a Harrison não é, na minha definição, um ser humano. O velho estreitou os olhos. Devemos seguir em frente com incrível delicadeza. Sugere o nosso colega mais velho, interveio Spaulding, com um sorriso de zombaria e formando as palavras com a boca, que isso pode ser obra do demónio? Os demónios de facto podem entrar num homem, entoou Chaderton, olhos de aço com a voz de Deus. Fazem uma mão humana realizar actos desumanos. E podemos ter a certeza de que o próprio demónio se opõe ao nosso trabalho aqui neste salão. Sem dúvida mandou sequazes para desviar-nos, ou, ouso dizer, destruir-nos.
Vários dos homens no grupo recomeçaram a rezar. Um benzeu-se. Agora, se me dão permissão, disse Marbury devagar, abrindo caminho em direcção ao corpo, vejo que o irmão Harrison tem alguma coisa na boca. Todos os olhos voltaram-se para o morto, cabeças curvadas; o círculo ficou menor. Perdão, continuou o pastor, curvando-se perto do cadáver e fazendo a mão pairar a centímetros da boca. Não toque nele!, sussurrou Lively, sugando a respiração como se houvesse recebido um soco no estômago. Que ar dramático..., pensou Marbury. Ainda assim... Lançou a mão sem aviso, rápida e num movimento do qual só se notou um borrão, e pegou um pedaço de papel amassado e húmido na boca do morto. Todos arquejaram. Mais homens se benzeram. Com delicadeza e usando o polegar e o dedo médio, ele desamassou o papel e levou-o para mais perto da vela. Havia palavras escritas, como todos viam. Que é que diz?, sussurrou Lively, quase sem emitir som algum. Vagando pelo mundo como carrascos de Deus.
Marbury pôs o pedaço de papel rasgado na escrivaninha de Harrison. Os homens amontoaram-se em volta. Ofereceram velas para iluminar o trabalho. Todos leram a nota. As palavras parecem de algum modo conhecidas, pensou o pastor consigo mesmo. É claro que esta nota horrenda foi escrita pela mão do próprio Harrison. Lively bateu com o fundo da vela na folha enrugada, húmida e rasgada. Eu concordo, afirmou calmamente o ministro. Inventava na mente imagens do assassino forçando a vítima a abrir a boca e a comer as suas próprias palavras. É uma mensagem?, quis saber o outro. Uma advertência?, perguntou Spaulding. Isto é obra de demónios, afirmou Chaderton. Tanto mais razão, interveio Marbury, com a voz um pouco mais elevada que antes, parecendo um fino tecido de tolerância esticado sobre um abismo de impaciência, para nos envolvermos num véu de silêncio». In Phillip Depoy, A Conspiração do rei James, Prumo, 2009, ISBN 978-857-927-022-2.

Cortesi de Prumo/JDACT