sábado, 11 de agosto de 2018

O Fardo da Nobreza Donna Leon. «Ontem. E por que nos accionaram? Porque um anel com o brasão dos Lorenzoni foi achado junto ao corpo. Brunetti levou novamente os dedos à ponte do nariz e fechou os olhos»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Sendo os italianos acima de tudo pragmáticos, muitos acreditam que se não tivesse sido Pietro Lorenzoni, o pai do actual conde, outra pessoa teria revelado o local do esconderijo dos líderes da comunidade judaica à SS (maldita). Outros sugerem que ele deve ter sido ameaçado para fazer o que fez, afinal, depois que a guerra acabou, membros dos vários ramos da família se devotaram ao bem da cidade, não apenas com seus muitos actos de caridade e generosidade a instituições públicas e privadas, mas também por terem assumido diversos cargos administrativos, até mesmo o de prefeito, embora por apenas seis meses, tendo servido com distinção, como se diz, em diversos cargos públicos. Um dos Lorenzoni foi reitor da Universidade; outro, nos anos sessenta, foi por um período o curador da Bienalle; outro ainda, após a sua morte, legou sua colecção de miniaturas islâmicas ao museu Correr. Mesmo que não recordassem nenhum desses factos, a maioria dos habitantes da cidade ligava o nome ao do jovem que fora sequestrado dois anos antes, levado por dois homens mascarados enquanto ele e a namorada estavam estacionados na frente dos portões da villa que a família tinha nos arredores de Treviso. Como a garota chamou primeiro a polícia, e não a família, os bens dos Lorenzoni foram congelados imediatamente, antes mesmo que eles fossem informados do crime. O primeiro pedido de resgate, quando chegou, exigia sete bilhões de liras, e à época houve muita especulação sobre a capacidade dos Lorenzoni de levantar tanto dinheiro. O pedido seguinte, feito três dias depois do primeiro, reduzia o montante para cinco bilhões.
Mas, então, as forças da ordem, embora não apresentassem sinais claros de progresso na descoberta dos responsáveis, cumpriram o protocolo em casos de sequestro e conseguiram bloquear todas as tentativas da família de conseguir um empréstimo ou trazer dinheiro de suas fontes no exterior, de modo que o segundo pedido tampouco foi atendido. O conde Ludovico, pai do rapaz sequestrado, apareceu na televisão nacional implorando aos responsáveis que libertassem o seu filho, afirmando que se oferecia para ficar no lugar dele, embora estivesse muito abalado para explicar de que modo isso poderia ser feito. Não houve resposta a seu apelo, nem um terceiro pedido de resgate. Desde então, não houve mais sinal do rapaz, Roberto, e nenhum progresso, pelo menos oficial, na elucidação do caso. Os bens da família permaneceram bloqueados por seis meses e depois ficaram por mais um ano sob o controle de um administrador indicado pelo governo, ao qual cabia autorizar ou não o saque ou o pagamento de qualquer quantia superior a um milhão de liras. Foram muitas as somas desse nível que a família Lorenzoni despendeu durante aquele período, mas todas eram legítimas, recebendo portanto autorização para serem quitadas. Cessados os poderes do administrador, uma suave vigília governamental, discreta ao ponto da invisibilidade, continuou a monitorar os negócios e os gastos dos Lorenzoni, mas não constatou nenhum dispêndio acima do normal para a administração dos negócios.
Embora a lei determinasse que se esperasse mais três anos para que fosse declarada oficialmente a morte do rapaz, a família já o dava por morto. Seus pais viveram o luto à sua maneira: o conde Ludovico passou a se dedicar em dobro aos negócios, enquanto a condessa recolheu-se à devoção privada e dedicou-se a actos de piedade e caridade. Roberto era filho único, e a família ficou sem herdeiro, o que levou um sobrinho, o filho do irmão mais novo de Ludovico, a ser iniciado nos negócios e preparado para assumir a direcção das empresas, que incluíam grandes e variadas firmas na Itália e no exterior.
A notícia de que o esqueleto de um jovem portando um anel com o brasão dos Lorenzoni tinha sido encontrado foi comunicada por telefone à polícia de Veneza do aparelho de uma das viaturas dos carabinieri, sendo recebida pelo sargento Lorenzo Vianello, que com cautela anotou o lugar, o nome do proprietário do terreno e o do homem que havia encontrado o esqueleto. Ao desligar, Vianello dirigiu-se ao andar acima do seu e bateu à porta de seu superior imediato, o commissario Guido Brunetti. Ao ouvir um sonoro Avanti, Vianello empurrou a porta e entrou. Buon dì, commissario, cumprimentou e, sem ser convidado, assumiu o seu lugar de costume na cadeira de frente para Brunetti, que estava sentado à sua escrivaninha, com uma enorme pasta aberta à sua frente. Vianello notou que o seu superior estava usando óculos, mas não se lembrava de tê-los visto antes. E desde quando o senhor usa óculos, chefe? Brunetti olhou para a frente, os seus olhos estranhamente ampliados pelas lentes. São apenas para leitura, explicou, tirando-os e jogando-os sobre os papéis à sua frente. Na verdade, não preciso deles. É que tornam mais fácil a leitura dessas letrinhas miúdas dos documentos de Bruxelas.
Com o polegar e o indicador, ele esfregou a ponte do nariz, como se para remover a marca deixada pelos óculos e também a que fora deixada pelos documentos que ele estava lendo. Continuando a olhar para o sargento, perguntou: do que se trata? Recebemos um telefonema dos carabinieri vindo de um local chamado... Ele começou, olhando em seguida para baixo, para o pedaço de papel na sua mão. Col di Cugnan. Fez então uma pausa, mas Brunetti não disse nada. Fica na província de Belluno, como se dar a Brunetti uma ideia mais clara da geografia fosse útil de algum modo. Brunetti continuou mudo, e Vianello prosseguiu: um fazendeiro de lá descobriu um corpo arando um terreno. Aparentemente, é de um jovem com vinte e poucos anos de idade. Segundo quem?, interrompeu Brunetti. Acho que segundo o medico legale, senhor. E quando foi isso? Ontem. E por que nos accionaram? Porque um anel com o brasão dos Lorenzoni foi achado junto ao corpo. Brunetti levou novamente os dedos à ponte do nariz e fechou os olhos». In Donna Leon, O Fardo da Nobreza, 1997, Companhia das Letras, 2012, ISBN 978-853-592-056-7.

Cortesia da CdasLetras/JDACT