terça-feira, 21 de agosto de 2018

Diário do conde de Sarzedas. Vice-rei do Estado da Índia (1655 -1656). Artur T. Matos. «Mascate caíra em 1650, arrastando as fortalezas em redor. Diu, bloqueado por uma armada holandesa, via-se impossibilitada de comerciar com Moçambique, Pate e Meca»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Aliás, na mesma embarcação, o capitão e Manuel Mendonça passaram a viagem a acusar-se mutuamente, acabando o vice-rei por autorizar a transferência de Manuel Mendonça com os seus criados para o patacho Santa Teresa. Na almiranta é um grupo de degredados que, com a conivência de dois religiosos, ao que parece, provocaram distúrbios. E os exemplos poderiam multiplicar-se. Os castigos são quase sempre a prisão, os trabalhos na bomba e nos batéis. Mas também o julgamento de alguns casos é adiado para Goa.

Se esta viagem foi marcada por alguma normalidade, tem, porém, a particularidade de nela ter participado um vice-rei que, por essa razão, assumi u o comando supremo da armada. Os navios seguiram em conserva e apenas o patacho Santa Teresa de Jesus se ausentou durante alguns dias, o que causou alguma preocupação. As embarcações comunicaram entre si através de batéis e houve uma correspondência assídua trocada com os comandos, as ordens religiosas, o auditor, ou com algumas outras pessoas de relevo social. Mas a circulação de gente entre navios também ocorreu, ou por necessidade de serviço, ou por simples visita de cortesia e distracção. Sempre que o tempo o permitiu, foi tirada a coordenada do lugar e, algumas vezes, medida a altura com o prumo. O confronto destes elementos entre pilotos foi muitas vezes feito, como solicitada a opinião de capitães e pilotos experientes sobre algumas decisões importantes a tomar.

Em 22 de Agosto de 1655 desembarcava em Goa o vice-rei Rodrigo Lobo Silveira. A conjuntura político-militar no Estado da Índia exigia um governante competente e avisado. O governador em exercício, Brás Castro, havia tomado conta da administração do Estado em condições irregulares, já que tinham resultado de um motim chefiado pelo secretário de estado José Chaves Sotomaior e em que fora também um dos promotores. Apesar disso, manter-se-ia no governo por três anos. A somar a esta crise política, a defesa da Cidade de Goa mostrava-se incapaz de poder resistir a um ataque inimigo. Estava sem muros e com poucos moradores, alertava a vereação goesa. As demais fortalezas do Estado da Índia davam mostras de não poderem sobreviver aos ataques sucessivos perpetrados por naturais e europeus.
Mascate caíra em 1650, arrastando as fortalezas em redor. Diu, bloqueado por uma armada holandesa, via-se impossibilitada de comerciar com Moçambique, Pate e Meca. Com dificuldade resistia Chaul à pressão dos mouros sobre o seu termo. No Canará os holandeses pressionavam os reis locais a manterem o cerco às fortalezas portuguesas, como forma de impedir a saída da pimenta e do arroz, este essencial à sobrevivência de Goa. E, fracassadas as diligências diplomáticas e sem recursos para uma defesa eficaz e, muito menos, para uma ofensiva militar, Barcelor é abandonada e Mangalar entregue ao inimigo. Onor terá o mesmo destino, já que, após heroica mas malograda resistência, por decisão do Conselho de Governo de Goa é desmantelada a fortaleza e mandada recolher a Goa a sua gente. Muito ruim exemplo para conservação do povo que tínhamos na Índia, comentava assim um contemporâneo este acontecimento.
As posições portuguesas no Malabar sofriam das mesmas maleitas. Cranganor, com as muralhas arruinadas e sem guarnição suficiente, não resistiria a qualquer embate organizado. E, no Kerala, a cidade de Cochim e o forte de Coulão, desguarnecidos de meios de defesa, estavam prontos a render-se ao inimigo. Também a decadência comercial e política das cidades de Negapatão e São Tomé de Melia por no Coromandel, prenunciavam o ocaso da presença portuguesa, até porque a vizinhança holandesa em Paliac até lhe retirava qualquer pretensão de ressurgimento económico imediato. Aliás, estes haviam saqueado recentemente Tuticorim, na costa da Pescaria, centro produtor de aljôfar.
No restante Estado a situação era análoga. Moçambique achava-se desprovido do essencial e a indisciplina militar grassava de tal modo, que alguns soldados haviam morto à paulada um dos seus oficiais. No Extremo-Oriente, as arremetidas holandesas haviam feito paralisar o comércio de Macau devido ao encerramento do estreito de Malaca, enquanto os castelhanos de Manila constituíam também uma ameaça de peso . As carências da administração eram enormes e avolumara-se o descontentamento da população que, amotinada, trucidara o capitão-mor. Em Timor, os holandeses apoderavam-se da tranqueira de Cupão e instalavam-se definitivamente na ilha». In Artur Teodoro Matos, Diário do conde de Sarzedas, Vice-rei do Estado da Índia (1655 -1656), Lisboa, colecção Outras Margens, CNCDPortugueses, 2001, ISBN 972-787-052-X.

Cortesia de CNCDP/JDACT