segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Os Sete Minutos. Irving Walace. «O seu desencanto com o Instituto atingiu o auge quando a mãe morreu. Verificou que o novo medicamento administrado para a salvar apressara-lhe realmente a morte»

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«(…) Foi no percurso do Wilshire Boulevard, a meio caminho entre a banca de advocacia em Beverly Hills, que acabava de deixar para sempre, e o seu apartamento de três peças, em Brentwood, que a compreensão absoluta do que havia acontecido atingiu Mike Barrett com impacto total. Depois de todos aqueles anos de lutas, libertara-se. Lograra a independência económica. Estava feito. Pelo canto do olho, podia ver a caixa de papelão ao seu lado no assento. Uma hora antes, enchera-a de documentos e objectos pessoais acumulados na escrivaninha de nogueira da firma, a escrivaninha que lhe servira de mesa de trabalho durante dois anos de serviço. O conteúdo da caixa, de certo modo, representava o saldo de uma carreira legal decepcionante, frustrada e de segunda categoria, abrangendo uma década dos seus trinta e seis anos de vida. A própria caixa, o simples acto de trazê-la, simbolizava uma vitória que (na mais negra das noites insones e de ódio de si mesmo) tinha quase perdido as esperanças de algum dia obter. Aquilo pedia comemoração, desfile triunfal, um arco, ao menos uma grinalda. Pois nada disso lhe faltava, estavam ali presentes, na imaginação e no coração. Mas mesmo assim, requeria algum festejo exterior de independência ganha êxito conseguido. Mantendo firme o volante do carro, com a mão livre desfez o nó da gravata e arrancou-a do pescoço. A seguir, o colarinho da camisa. Desabotoou-o, abrindo bem as pontas. Sem gravata, em plena hora de almoço de um dia de trabalho. Crime de lesa majestade no reino da Ordem dos Advogados Americanos, a não ser que se seja a própria majestade. Então lembrou-se da frase latina: Rex non potes peccare. Ao rei tudo é permitido. Deus, que dia lindo. O sol, que beleza. A Cidade dos Anjos, que beleza. O povo nas ruas, os seus vassalos, que beleza. Osborn Enterprises, Inc., que beleza. Fay e Osborn, que beleza. Todos os amigos, que bei... Não, talvez nem todos..., não Abe Zelkin. Abe, que beleza, sim, a amizade de ambos, sim, isso também, excepto que possivelmente já não existiria dentro de algumas horas. Sentiu-se culpado, e uma súbita mancha empanou o rosto da alegria. Deu-se conta de que Westwood passava do lado de fora do seu Pontiac descapotável, de capota baixa, e de que havia gente nas ruas, as calçadas estavam apinhadas, mas não eram os seus súbditos, aplaudindo-o neste grande dia. Eram Abe Zelkin, recriminando-o pela traição.
O Honesto Abe. Que diabo, quem necessita de consciência incómoda quando tem um amigo como o Honesto Abe? No entanto, por incrível que pareça, a verdade é que fora Abe Zelkin quem plantara a semente que hoje frutificava, a cisão entre Zelkin & Barrett, a união de Osborn & Barrett. Buscou na lembrança as origens, reavivando-as aos poucos, para completar o sumário antes de pleitear o seu caso perante Zelkin, à hora do almoço. Onde começara tudo? Na Universidade de Harvard? Não. Lá tinha sido a amizade com Phil Sanford, ao ocuparem o mesmo quarto. Não, em Harvard não, mas algum tempo depois, em Nova Iorque. Não naquele escritório jurídico imenso, mais semelhante a uma fábrica, onde se iniciara, porque não gostava daquela firma, ainda estava interessado em defender os direitos humanos e não os direitos de propriedade, em retrospecto um imaturo idealista, obtuso rústico forense, com uma mecha de cabelo em vez de cérebro. Fora no lugar subsequente, aquela estufa para flores geradas pela jurisprudência, o Instituto de Utilidade Pública, em Park Avenue, onde o seu salário consistia em remendos de cotovelo para casacos puídos e citações de Cardozo e Holmes sobre a alta finalidade da lei. O Instituto de Utilidade Pública, fundação mantida por vinte grandes corporações industriais como lenitivo para as suas consciências pesadas, onde cada causa decorria da superabundância da União das Liberdades Civis Americanas e onde cada constituinte era o eterno oprimido. Seis anos daquilo, de vida apertada, porque achava que estava a corrigir alguns males e muitos erros, iludido na ideia de que eram os verdadeiros inimigos, até aprender que não passavam de moinhos de vento artificiais para o conservar entretido em montar um espectáculo de relações públicas para os fundadores do Instituto. Seis anos para descobrir a identidade dos verdadeiros inimigos, para descobrir que o seu trabalho era uma fraude, que a benemerência era um embuste. Seis anos para descobrir a verdade sobre o modo de ser manipulado pelos poderosos. Quando ele e Abe Zelkin finalmente descobriram, retiraram-se da firma. Tinham-se demitido com um mês de intervalo entre si. Barrett foi o primeiro. O seu desencanto com o Instituto atingiu o auge quando a mãe morreu. Verificou que o novo medicamento administrado para a salvar apressara-lhe realmente a morte. E, como possuía faro canino, não tardou em tomar conhecimento de outras mortes prematuras de anemia a plástica, um efeito secundário ocasionado por esse mesmo medicamento. Indignado, Barrett preparou o esquema do caso legal, encontrou um reclamante adequado e finalmente apresentou um memorando ao director-administrativo do Instituto. Nele acusava um dos laboratórios farmacêuticos mais famosos da América, solicitando fundos para uma investigação exaustiva e insistia, se porventura os resultados confirmassem as suas suspeitas, em processar legalmente a fábrica de remédios ou marcar audiência perante a Administração Federal de Comestíveis e Medicamentos. Estava certo de que seria encorajado a prosseguir». In Irving Walace, Os sete Minutos, 1969, Livros do Brasil, colecção Dois Mundos, 1988, ISBN 978-972-380-948-0.

Cortesia de LBrasil/JDACT