segunda-feira, 27 de agosto de 2018

O Retrato do Rei. Ana Miranda. «Estivestes com dom Fernando no palácio? Tenório aquiesceu. Dissestes alguma coisa a ele, sobre meu pai? Não. Nada. Ele perguntou por mim? Sim, como sempre»

Cortesia de wikipedia e jdact

O Contrato da Carne
«(…) O lugar abrigava uma corja de errantes e vadios, de quadrilhas hostis, ferozes, gananciosas. Mesmo os principais viviam de lugar em lugar, como os filhos de Israel no deserto. Respeitavam apenas a força dos músculos ou da pólvora. Os paulistas que residiam nas Minas julgavam-se donos daquilo tudo ali, do ouro, das águas, das terras, das montanhas, das florestas, do céu e das nuvens. Até mesmo do ar que respiravam. Os portugueses, os baienses, os pernambucanos, que ali eram chamados de forasteiros, tinham que se contentar com as piores repartições dos riachos auríferos. Todos os chefes no lugar eram paulistas. Além de suportarem o domínio dos naturais de São Paulo, os portugueses, intimidados, tinham que ouvir calados as insolências dos bastardos e dos tapanhunas que andavam à proa dos potentados adversários. Os escravos tupis dos paulistas e os negros africanos dos portugueses brigavam nas ruas. Não só os pobres, mas também os ricos descompunham e contendiam com os seus inimigos. Todos andavam armados com pistolas, facas, clavinas. Os paulistas saíam em grupos, tocando caixa e trombeta, gritando contra os reinóis. Fora daqui! Para casa!
Os lusitanos amedrontavam-se e fugiam. Não é lugar para nenhum reinol, quanto mais uma fidalga, concluiu Tenório. Vossenhora é portuguesa, ireis sofrer com as opressões. Aqui todos brigam, também; todos se desentendem. Que diferença há entre o Sertão dos Cataguases e o resto do mundo, ao final? O ouro.E o que mais soubestes? Que o senhor Valentim é paulista. Paulista? Pode ser ladrão, violador de mulheres, falsário, judeu... Não, judeu, ele não é. Como sabeis? As rameiras conhecem. Tenório, agitado, pisava com as suas botas sujas no tapete de damasco. Pode ser uma cilada. Não acredito que o senhor Valentim seja mau, disse Mariana. Como posso aconselhar a vossa ida? Andar pelos matos com um natural da terra... Ele está ao serviço do meu pai. Parece uma onça de pernas compridas. O que há de mal em ser paulista? São selvagens, têm sangue misturado, vivem na desordem, cultivam o nomadismo e a crueza.
Ele tem bons modos, disse Mariana. Sabe falar. Com outras roupas, pareceria fidalgo. Ouvi dizer que há muitos paulistas de bons troncos, até mesmo aristocratas. São todos rudes e iletrados. Ficaram em silêncio. Tenório batia insistentemente a ponta do pé no chão. Estivestes com dom Fernando no palácio? Tenório aquiesceu. Dissestes alguma coisa a ele, sobre meu pai? Não. Nada. Ele perguntou por mim? Sim, como sempre. Mariana pegou nos papéis com as contas, que estavam sobre a mesa, e guardou-os. Essa história de herança deve ser mentira. Tenório insistiu. Vosso pai deserdou-vos. Conheço-o muito bem. As pessoas modificam-se com o tempo, senhor Tenório. Porque o senhor Valentim iria mentir? Porque motivo viria chamar-me? Como acreditais num sujeito que se chama Valentim e tem aquela triste cara de ovelha desgarrada? Pode ser até mesmo nome falso. Deve chamar-se Borrego. Mariana sorriu da tolice de seu amanuense.
Ouviram uma gritaria na rua e foram à varanda. Pessoas corriam pela rua Direita com tochas nas mãos. Sabeis quem fugiu para as Minas?, disse Tenório. Bento Amaral Coutinho. Matou um plantador de cana com sessenta estocadas, e dessa vez a sua família nada poderá fazer; nem sempre o dinheiro resolve. Os irmãos do morto juraram vingança. O povo está correndo para a casa de dom Fernando, exigindo a prisão do assassino. Não há ninguém mais agressivo no Rio de Janeiro do que Bento Amaral. Mas tenho uma dívida de gratidão para com ele, ajudou-nos quando da morte do meu marido. Gostaria de poder retribuir-lhe de alguma forma. Tarde demais, disse o amanuense e saiu, tropeçando nos próprios pés». In Ana Miranda, O Retrato do Rei, Editora Schwarcs, Companhia das Letras, 1991, ISBN 978-857-164-190-7.

Cortesia de ES/CdasLetras/JDACT