sábado, 14 de setembro de 2019

A Maldição de Afonso II. Maria Antonieta Costa. «O rei manteve-se afastado. Nem sequer cheirastes os seus pés fedidos!, gracejou. Entre duas dores, a jovem soberana continuou, com dificuldade: se o meu primeiro filho tivesse nascido varão...»

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«Querida Toda, cessai já com esse rodopio, por favor! Fico terrivelmente agoniada só de olhar para vós..., como se não me bastasse esta dor excruciante que me trespassa as entranhas... Não olheis, senhora. Concentrai-vos na vossa bem árdua tarefa e deixai-me com a minha, respondeu-lhe a condessa, que não parava de cirandar pela alcova. Dulce fechou os olhos. Vivera sete dos nove meses daquela gravidez na penumbra dos seus aposentos privados, quase como se fosse cega. Nada de horrível poderia ser vislumbrado. Topar com um cadáver caído algures causaria a morte do feto, deparar com um ser humano feio e repugnante provocaria o mesmo efeito. As janelas haviam sido cobertas com tapeçarias de forma a bloquear ao máximo a luz do exterior, um perigo para os olhos da futura mãe. O essencial, para que a gestação fosse bem-sucedida; era manter o ventre quente, no escuro e no silêncio. No dia em que fora afastada e da convivência, o bispo de Coimbra celebrara um elaborado serviço litúrgico em que pedira a Deus a bênção para o nascimento de um varão. Depois do culto e das orações do clero, haviam-na fechado. Rigorosamente igual aos partos anteriores. Gerar um filho era um tormento! Sempre que o físico lhe dava a certeza de estar de novo prenhe, privavam-na da liberdade. E nas seis últimas semanas reduziam-lhe ainda mais o movimento, obrigando-a a permanecer deitada.
Um novo desconforto fê-la abrir os olhos, que se cravaram no tapete pendurado frente ao leito, como se fosse uma abertura para o mundo. Aquela cena de caça de volataria, uma bela paisagem bordada em tons suaves, constituíra a única visão permitida durante todo aquele tempo. Um maravilhoso azul-celeste, que preenchia grande parte da sua dimensão, era cruzado por um ágil e nobre falcão que tentava apoderar-se de uma lebre fugitiva. Era um jogo, masculino a embelezar um espaço feminino onde os homens, incluindo o rei, estavam proibidos de entrar, porque aquilo era um assunto de mulheres. De mulheres que os físicos pensavam ser homens cujo sexo não se formara convenientemente, permanecendo embutido nas entranhas, tornando-as uma versão inferior. E eram esses seres mal-acabados que pululavam pela câmara real: as amas da rainha, a parteira e serviçais.
Aaaaghhh!, gemeu dona Dulce, rebolando-se no leito. A condessa Toda Palacín continuava às voltas pelo aposento. Liderava as servas no manuseamento dos castiçais, dos panos, das caldeiras de água quente. Tinha muita experiência em partos. Com duas filhas, assistira a muitos nascimentos, inclusive ao das primeiras infantas resultantes da união entre o ainda infante Sancho, primogénito de Afonso Henriques, e Dulce de Aragão, de quem era dama de companhia, uma infanta formosa e doce, como o nome indicava. Toda!, chamou de novo a parturiente. E se for outra menina? O seu rosto e colo transpiravam suor, como se pulverizados por pequenas gotas de orvalho. Tinha a tez pálida pela exaustão de tantas horas de sofrimento, de desgaste. Mas, naquele momento, as suas pupilas, muito negras, exprimiam o receio que tal desilusão causaria ao real esposo, coroado há poucos meses, e, sobretudo, ao reino. Não! Desta vez não!, assegurou-lhe a aia em tom exaltado. O rei manteve-se afastado. Nem sequer cheirastes os seus pés fedidos!, gracejou. Entre duas dores, a jovem soberana continuou, com dificuldade: se o meu primeiro filho tivesse nascido varão..., teria agora dez anos. Sou uma má esposa...
A rainha sabia bem a importância da continuidade do poder na Península dos cinco reinos cristãos. Conflitos políticos envolviam as relações entre Portugal, Leão, Castela, Navarra e Aragão. A ascensão do califado almóada, comprometido em revigorar a hegemonia muçulmana na Ibéria, ocupava já grande parte do Al-Andalus. Sois fecunda, senhora..., sois fecunda, rematou a dama, em voz baixa, mas encorajadora. A criança já está formada, é homem e vai nascer, não tarda. E se fiz alguma coisa mal?, lastimou-se ainda». In Maria Antonieta Costa, A Maldição de Afonso II, 2019, Clube do Autor, 2019, ISBN 978-989-724-483-4.

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