quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Paris é uma Festa. Ernest Hemingway. «Nessa altura, que o mau tempo chegara, poderíamos deixar Paris por uns tempos e irmos para qualquer sítio onde, em vez de chuva, houvesse neve a descer por entre pinheiros…»

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(…) Ao olhá-la, senti-me perturbado e num estado de grande excitação. Apeteceu-me metê-la no meu conto, ou em qualquer parte, mas a rapariga colocara-se de maneira a poder observar a rua e a entrada do café. Percebi que estava à espera de alguém. Por isso, continuei a escrever. O conto ia-se escrevendo por si próprio e eu via-me aflito para o acompanhar. Mandei vir outro rum e ia observando a rapariga sempre que levantava os olhos ou que aparava o lápis com um apara-lápis, enquanto as aparas de madeira se iam encaracolando no pires que tinha debaixo do cálice. Eu vi-te, ó formosura, e tu agora pertences-me embora estejas à espera de alguém e eu não torne, possivelmente, a ver-te em toda a minha vida, pensei. Pertences-me e toda a cidade de Paris me pertence como eu pertenço a este caderno e a este lápis. Depois, enfronhei-me mais uma vez no que estava a escrever. Avancei pela história dentro, acabando por me perder nela. Agora era eu que escrevia e não o conto que se escrevia a si próprio, de forma que não tornei a levantar a cabeça.
Esqueci-me do tempo, do lugar em que me encontrava e nem sequer mandei vir mais rum St. James. Fartara-me dele embora nem sequer nele pensasse. Por fim, acabei o conto. Sentia-me cansadíssimo. Li o último parágrafo e, quando levantei os olhos à procura da rapariga, já ela havia saído. Oxalá tenha ido com um homem decente, pensei. Mas senti-me triste.
Fechei o caderno: meti-o na algibeira de dentro e pedi ao criado uma dúzia de portugaises e meia garrafa de vinho branco, seco, da casa. Depois de escrever uma história, sentia-me sempre vazio e simultaneamente triste e feliz como se tivesse acabado de me entregar ao amor físico e ficava, nessa altura, com a certeza de que escrevera uma história muito boa, embora não soubesse ao certo qual o seu verdadeiro valor senão quando, no dia seguinte, a lia de ponta a ponta. Comi as ostras, que possuíam um forte sabor a água do mar e um leve travo metálico que o vinho branco e fresco ia neutralizando para lhes deixar somente o gosto próprio da sua massa suculenta, e, à medida que ia bebendo o líquido frio de cada concha e o fazia descer com o vinho fresco e bem apaladado, ia deixando de sentir a tal impressão de vazio. Comecei a sentir-me feliz e a fazer planos.
Nessa altura, que o mau tempo chegara, poderíamos deixar Paris por uns tempos e irmos para qualquer sítio onde, em vez de chuva, houvesse neve a descer por entre pinheiros e a cobrir as estradas e as encostas das altas montanhas, a uma altitude a que a sentíssemos ranger quando à noite regressássemos a casa. Abaixo de Les Avants havia um chalet, onde a pensão era esplêndida e onde poderíamos estar juntos, ter os nossos livros e sentirmo-nos quentes à noite, bem juntos, na cama, com as janelas abertas e as estrelas luzindo no céu. Eis para onde iríamos. As viagens de comboio em terceira classe não eram caras. Com a pensão, pouco mais gastaríamos do que em Paris. Deixaria o quarto de hotel onde escrevia e ficaria apenas com a renda do n.° 74 da Rue Cardinal Lemoire, que era nominal. Escrevera umas coisas para um jornal de Toronto e já havia recebido os cheques respeitantes ao meu trabalho. E artigos de jornal era coisa que eu poderia escrever em qualquer parte e em quaisquer circunstâncias e, assim, dispúnhamos de dinheiro para a viagem. Talvez longe de Paris eu pudesse escrever coisas a respeito de Paris, como em Paris conseguia escrever acerca do Michigan. Nessa altura, ignorava que era cedo de mais para isso, pois ainda não conhecia Paris suficientemente bem. Mas eventualmente era assim que as coisas se passavam. De qualquer maneira, iríamos se a minha mulher tivesse vontade de ir. Acabei as ostras e o vinho; paguei a conta e regressei pelo caminho mais curto, pela Montagne Sainte Généviève, debaixo de chuva, a qual nesse tempo era simples estado de tempo local e não algo susceptível de transformar a nossa vida, à nossa casa do cimo da colina». In Ernest Hemingway, Paris é uma Festa, 1960, Edição Livros do Brasil, Lisboa, Colecção Dois Mundos, 2000, ISBN 978-145-165-540-7.

Cortesia de ELdoBrasil/CDMundos/JDACT