quarta-feira, 11 de setembro de 2019

O Idiota. Fiodor Dostoiévski. «Através deles transparecia algo gentil mas com uma expressão afadigada e tão esquisita que muita gente ao primeiro relance reconheceria estar defronte de um epiléptico»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Oh! Tempo é que não me falta; é inteiramente propriedade minha...»

«Em dada manhã de Novembro, aí pelas nove horas, o comboio-rápido de Varsóvia aproximava-se de Petersburgo em alta velocidade. Estava a descongelar, e tão húmido e embaçado que era difícil distinguir qualquer coisa a dez passos da linha à direita ou à esquerda das janelas dos vagões. Dentre os passageiros alguns regressavam do estrangeiro, mas a maioria dos que lotavam os compartimentos da terceira classe era gente de condição humilde, vinda não de muito longe, a negócio. Todos naturalmente estavam cansados e friorentos, com os olhos pesados de toda uma noite de viagem, e as suas faces pálidas e amarelentas competiam com a cor do nevoeiro. Numa das carruagens de terceira classe, dois passageiros desde antes de amanhecer estavam sentados diante um do outro, ao lado da janela.
Ambos moços, não muito bem vestidos, viajando com pequena bagagem. Tinham uma aparência de chamar atenção e demonstravam querer encetar conversação. Se houvessem podido saber o que mutuamente possuíam de extraordinário, muito se teriam admirado de o acaso estranhamente os colocar assim frente a frente, num vagão de terceira classe do comboio-rápido de Varsóvia. Um deles era um homem baixo, nuns vinte e sete anos, de cabelos crespos quase pretos e olhos cinzentos, pequenos e ardentes. Um nariz grande e chato avultava entre os malares proeminentes. Os lábios finos conservavam na sua curva um contínuo sorriso atrevido, de uma ironia maliciosa; mas a fronte bem conformada e alta, redimia as linhas grosseiras da parte inferior do rosto. O que mais impressionava, apesar do seu vigor, era a palidez mortal que lhe dava ao mesmo tempo um aspecto de cansaço e um feitio a bem dizer dolorosamente ardente, que não se coadunava com o insolente sorriso rude nem com a expressão dura e presunçosa dos olhos. Agasalhava-o um grosso sobretudo preto forrado de pele de carneiro e que não lhe deixara sentir o frio nocturno; já o seu companheiro porém, tinha ficado exposto ao frio e à humidade dessa noite bem russa de Novembro, para a qual evidentemente não viera preparado. Trazia este, uma capa bem espessa e ampla, com enorme capuz, dessas que, embora muito usadas lá fora, na Suíça ou no norte da Itália, durante o Inverno, estão longe, todavia, de servir a quem se propõe uma viagem como a do percurso entre Eldtkuhnen e Petersburgo. Viável e satisfatória na Itália, longe estava de ser suficiente para a Rússia. O dono da capa era um jovem também de uns vinte e seis ou vinte e sete anos, de estatura pouco acima da vulgar, de cabelos louros e abundantes, faces encovadas e uma barba pontuda tão clara, que parecia branca. Seus olhos eram grandes, azuis e fixos. Através deles transparecia algo gentil mas com uma expressão afadigada e tão esquisita que muita gente ao primeiro relance reconheceria estar defronte de um epiléptico.
Ainda assim o rosto era agradável, bem tratado, de traços finos, sem uma coloração própria, muito embora nessa ocasião estivesse um pouco azulado por causa do frio. Segurava um pequeno embrulho atado e um lenço grande de seda puída onde decerto estavam todos os seus haveres. Calçava sapatos de sola grossa, cobertos com polainas, tudo à maneira estrangeira. O seu companheiro de cabelos escuros, o do sobretudo de pele de carneiro, continuava a observar tudo isso, visto não ter o que fazer; e por fim, dando ao sorriso uma indelicadeza maior, num desses gestos que não raro traem, casualmente, certa satisfação ante a desgraça alheia, lhe perguntou sem a menor cerimónia: com frio? E deu uma sacudidela de ombros. Muito!, respondeu com extraordinária presteza ao seu vizinho. E pensar que se trata apenas de um degelo. Imagine então se estivesse congelando! Não esperava que por aqui já fizesse tanto frio. Perdi o costume. Está vindo do estrangeiro, hein?! Estou, sim; Suíça. Credo! Não me diga! E o homem moreno assobiou e depois riu. Puseram-se a conversar. Era notável a boa-vontade com que o jovem da capa suíça respondia às perguntas do companheiro. Não deixava sequer transparecer nenhum melindre de desconfiança ante a extrema impertinência das indagações inconvenientes e sem propósito. Contou-lhe que estivera uma grande temporada, mais de quatro anos, fora da Rússia; que o tinham mandado para o estrangeiro por causa da saúde, de uma certa moléstia nervosa fora do comum, do género assim da epilepsia ou da dança de São Guido, com ataques e contracções». In Fiodor Dostoiévski, O Idiota, 1869, 1943, Livraria Latina, Relógio d’Água, 2014, ISBN 978-989-641-401-6.

Cortesia de LLatina/Rd’Água/JDACT