sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Em Torno de Hilda Hilst. Nilze Maria A. R. S. Busato. «… uma postura feminina bem modificada em relação à que a mulher costumava, em geral, manifestar em outras formas de expressão literária»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Para entender esse fenómeno do apelo teatral dos seus textos em prosa, é preciso mergulhar na leitura deles e perceber o quanto o seu processo de composição mais nuclear, a saber, o fluxo de consciência, recebe um tratamento marcadamente dramático que tem menos a ver com uma personagem ensimesmada, cujos pensamentos vão-se construindo ou improvisando mentalmente, que com uma geração contínua de personagens que se desdobram em confronto contínuo. Além disso, tais confrontos de personagens proliferantes dão-se no âmbito de cenários económicos e sistemáticos, quase abstratos, o que os afasta bastante da representação realista. Já comentei esse aspecto dramático da literatura de Hilda em outros textos, mas, melhor do que eu o fiz, procurou evidenciá-lo a tese de doutoramento de Sonia Purceno, ainda inédita em livro, mas passível de ser interpretada on line na Biblioteca da Unicamp. A tese convincentemente demonstra a existência em Fluxo-floema, O caderno rosa de Lori Lamby e em outros textos de ficção, do forte movimento dialógico do fluxo, sustentado por personagens antagónicos e cenários compostos de recintos confinados, mas invariavelmente com escapes estreitos para cima e para baixo. Ou seja, a dramaturgia de Hilda tem se alimentado da sua ficção, mas sua dramaturgia propriamente dita, como disse antes, permanece num limbo tão obscuro como o de suas crónicas.

A Possessa e O Verdugo (Éder Rodrigues e Sara Rojo)
Os três últimos anos da década de 1960 (1967 a 1969) indicaram uma dedicação exclusiva do trabalho literário de Hilda Hilst à escrita dramática. Período em que a produção artística brasileira reflectia, de forma directa ou indirecta, o violento processo ditatorial. Nesse momento, o teatro e outras expressões artísticas sofriam com a censura e a repressão iniciada com o golpe militar de 1964. Na ratificação extrema do exercício opressivo com a proclamação do AI-5, a actividade teatral tornou-se um dos alvos de intervenção militar. A cena brasileira foi então tomada por grupos como o Teatro Opinião, o Teatro Oficina e o Teatro Arena, que exerciam a sua práxis numa corrente de afronta, resistência e posicionamento diante do contexto. Nessa época se efectiva uma dramaturgia de impacto ante a situação vivida pelo país (Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri, Oduvaldo Vianna Filho, Dias Gomes, Plínio Marcos, dentre outros). Segundo o estudo de Elza Cunha Vincenzo na obra Um teatro da mulher (1992), também foi nesse período que surgiram os pilares do que se pode denominar como dramaturgia feminina nacional:

Nesse momento temos uma postura feminina bem modificada em relação à que a mulher costumava, em geral, manifestar em outras formas de expressão literária. Ela, agora, revela nitidamente uma consciência e uma sensibilidade atentas ao momento social, à deterioração das estruturas básicas da sociedade.

O teatro hilstiano está inserido nesta tomada de posição e remonta aos anos opressivos da ditadura no Brasil. Ele também está conectado com as actividades do teatro universitário da época e com o pensamento de cunho social como protagonista da cena, conforme a própria dramaturga afirma em entrevista concedida: o meu teatro é como a CASA dentro de cada um de nós; CASA que não existe para morar, mas para ser pensada. Desse modo, a escrita dramatúrgica de Hilst tem como foco o poder subversivo que a palavra congratula em contacto com o acto que a força cénica lhe agrega. É uma palavra de força política, com suspensão existencial diante das questões humanas e sociais que inquietam tanto o sentido individual quanto a colectividade». In Nilze Maria Azevedo Reguera Susanna Busato, Em Torno de Hilda Hilst, Editora UNESP, 2015, ISBN 978-856-833-469-0.

Editora UNESP/JDACT