quarta-feira, 4 de setembro de 2019

A Regra de Quatro. Ian Caldwell e Dustin Thomason. «À minha frente, sobre a mesa do café, duas cartas, cada uma trazendo na sua proposta a perspectiva do que eu poderia vir a fazer no ano seguinte»

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«(…) À primeira vista este parece ser um destino vulgar, ser usado como meio de pregar uma peça em mulheres idosas. Mas imagino que Rodrigo e Donato ficaram muito mais famosos morrendo dessa maneira do que se tivessem permanecido vivos. Porque as viúvas, em todas as civilizações, são as donas da memória, e as que encontraram as cabeças no forno do padeiro certamente nunca esquecerão o acontecido. Mesmo quando o padeiro confessou o que havia feito, as viúvas devem ter continuado a contar a história da sua descoberta para as crianças de Roma, as quais, durante toda uma geração, se recordaram do conto das cabeças milagrosas tão vividamente quanto do monstro expelido pelas enchentes do Tibre. E, embora a história dos dois mensageiros fosse eventualmente esquecida, uma única coisa era certa. O maçom executou o seu trabalho a contento. O segredo do seu senhor, qualquer que fosse, jamais deixou San Lorenzo. Na manhã seguinte ao assassinato de Rodrigo e Donato, quando o lixeiro juntou lixo e vísceras no seu carrinho de mão, pouco se soube sobre a morte de dois homens. O lento ciclo que avança da beleza para o declínio e de novo para a beleza prosseguiu e, como os dentes da serpente que Cadmus semeou, o sangue do mal regou a terra romana e provocou o Renascimento. Quinhentos anos decorreram antes que alguém descobrisse a verdade. Quando os cinco séculos se passaram, e a morte encontrou um novo par de mensageiros, eu estava terminando o meu último ano na universidade de Princeton.

Que estranho, o tempo. Ele pesa mais sobre os que menos o têm. Nada é mais leve do que ser jovem com o mundo sobre os ombros; isso nos dá um sentimento de possibilidade muito sedutor, nos tornamos conscientes de que deve haver algo mais importante que poderíamos estar fazendo do que estudar para exames académicos. Posso ver agora a mim mesmo, na noite em que tudo começou. Estou deitado no velho sofá vermelho no nosso dormitório, lutando com Pavlov e os seus cães no meu livro de introdução à psicologia, procurando entender por que nunca preenchi o meu requerimento de conhecimento teórico e prático quando caloiro, como os demais colegas. À minha frente, sobre a mesa do café, duas cartas, cada uma trazendo na sua proposta a perspectiva do que eu poderia vir a fazer no ano seguinte. Sob o frio de Abril que fazia em Princeton, New Jersey, a noite de Sexta-Feira da Paixão havia chegado, e, a apenas um mês de terminarem as aulas não sou diferente de qualquer outro da classe de 1999: é difícil não pensar no futuro. Charlie está sentado no chão perto do frigorífico, jogando com o Shakespeare Magnético que alguém esqueceu no nosso quarto na semana anterior. A novela de Fitzgerald que ele deveria estar lendo para o seu trabalho final no curso de inglês está aberta no chão, a lombada dobrada como uma borboleta que tivessem pisado, e ele está formando e reformulando sentenças com os ímãs das palavras shakespearianas. Se lhe perguntarem porque não está lendo Fitzgerald, ele resmungará e dirá que não há interesse. Para ele, a literatura é como um jogo de apostas do homem culto, um jogo de trapaça de três cartas para a turma de universitários, no qual o que se vê nunca é o que se obtém. Para um rapaz com propensão científica como Charlie, isso é o cúmulo da perversidade. Ele vai para a escola de medicina no Outono, mas todos nós ainda estamos ouvindo a respeito da nota apenas suficiente que ele alcançou no seu teste de inglês em Março, no meio do semestre. Gil relanceia o olhar sobre nós e sorri. Finge estar estudando para um exame de economia, mas na TV estão passando a Bonequinha de Luxo e Gil tem uma queda por filmes antigos, especialmente aqueles com Audrey Hepburn. O seu conselho para Charlie foi directo: se você não quer ler o livro, então alugue o filme. Eles nunca saberão. Provavelmente, ele está certo, mas Charlie vê nisso algo de desonesto, e de todo o modo isso o impediria de queixar-se sobre a fraude que é a literatura; assim em lugar de Daisy Buchanan estamos assistindo a Holly Golightly, mais uma vez. Resolvo reagrupar algumas das palavras de Charlie até que a sentença no alto do frigorífico mostre fracassar ou não fracassar: eis a questão. Charlie levanta a cabeça e lança-me um olhar desaprovador». In Ian Caldwell, Dustin Thomason, A Regra de Quatro, Hypnerotomachia Poliphili, Grandes Narrativas, Editorial Presença, 2004, ISBN 978-972-233-263-5.

Cortesia de EPresença/JDACT