segunda-feira, 23 de setembro de 2019

O Guardador de Segredos. Davi Arrigucci Jr. «Um caminho atravessado por dificuldades. Se compararmos com Manuel Bandeira, de imediato se notará a diferença…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Poesia e Segredo
Drummond meditativo
«Para todos nós, Carlos Drummond de Andrade é a figura emblemática da poesia moderna no Brasil. Não creio que Manuel Bandeira seja, como muitos creem, um poeta menor e inferior a Drummond, mas Bandeira é o grande poeta da passagem para a modernidade, enquanto Drummond é o poeta central da experiência moderna brasileira. Ao considerar este facto, dei com o seguinte ponto que me pareceu fundamental: tudo na obra desse poeta não acontece senão por conflito. Realmente, tudo é conflito em Drummond. E conflito desde o começo da sua carreira. Ele experimentou contradições e dificuldades desde o início para forjar o denso lirismo meditativo que o caracteriza. Quando consideramos os seus grandes poemas, logo, nos damos conta do atrito dos elementos contraditórios e da densidade reflexiva de sua lírica. Até a figura humana do poeta, a sua atitude característica, parece estar associada a essa densidade da reflexão: o ser e o dizer ensimesmado. É raro que uma foto sua escape ao ar pensativo com que nos habituamos a vê-lo.
E desde o princípio estamos diante desse traço decisivo do estilo ou do modo de ser da obra: a exigência de uma mediação reflexiva para se chegar à poesia. Um caminho atravessado por dificuldades. Se compararmos com Manuel Bandeira, de imediato se notará a diferença: Bandeira dá a impressão da mais fluente naturalidade. O próprio Drummond chamou a nossa atenção, porém, para a fábrica altamente engenhosa de Bandeira, como está dito em seus Passeios na ilha, percebendo com precisão o quanto havia de cuidadosa construção naquela aparente espontaneidade. A primeira impressão que nos dá Bandeira é a do poeta ingénuo, na acepção que Friedrich Schiller empregou o termo no seu ensaio de fins do século XVIII: Poesia ingênua e sentimental. Ingénuo seria o poeta que procede instintivamente, conforme a natureza, enquanto sentimental, este seria o caso de Drummond, seria o poeta reflexivo, ou antes, o poeta que tendo se perdido da natureza busca, por meio da reflexão, restabelecer a sensibilidade ingénua.
Com efeito, para Drummond a naturalidade parece constituir um problema, e a poesia, o objecto de uma procura dificultosa. Assim, a questão fundamental é essa poesia travada pela dificuldade que parece ser a sina drummondiana. Procura da poesia é não apenas um dos melhores poemas de A rosa do povo, mas o traçado do esforço que caracteriza a sua aproximação ao poético. E basta lembrar outros poemas na mesma direção, como Consideração do poema, Oficina irritada ou O lutador, para sentir o peso dessa dificuldade e quanto a mediação do esforço reflexivo é uma exigência íntima para o poeta. Se dermos alguma folga aos conceitos de Schiller, Drummond será o nosso poeta moderno e sentimental.
No caso de Bandeira, a criação poética mostra-se como natureza prolongada, e a crença na inspiração, na súbita manifestação do poético que constitui para ele o alumbramento, confirma o modo de ser ingénuo. No entanto, sabemos que o alumbramento bandeiriano, essa linda palavra parece trazer consigo, pela trama dos sons, ecos simbolistas, entremeando luz à sombra e levando a iluminação a confundir-se com o mistério, é uma noção complexa. Exige do poeta uma atitude de apaixonada escuta e só se dá quando ela, poesia, quer, mas também não basta para concretizar em palavras a inspiração, uma vez que esta depende também dos pequeninos nadas da linguagem, que podem estropiar um verso ou uma imagem. Um poema pode ser, então, o resultado de um esforço construtivo de anos a fio: Bandeira gostava de lembrar a história de sua sofrida estatuazinha de gesso, renitente ao lacre verbal com que buscava encerrá-la num verso. E assim o Itinerário de Pasárgada é o caminho difícil da aproximação à poesia e a história da aprendizagem do ofício de poeta enquanto artista da palavra. Bandeira, que acreditava na importância da inspiração até para atravessar uma rua, não tinha, porém, nada de ingénuo.
O caso de Drummond, no entanto, é mais complicado. A sua concepção do poético exige a reflexão como mediação necessária para o encontro da poesia. Ora, essa modalidade de pensamento que é a reflexão tem uma origem romântica. Os pré-românticos alemães é que desenvolveram esse tipo de pensamento reflexivo, que nasce como uma fantasia do Eu sobre o Eu, como uma forma de pensar sobre o pensar. É um pensar sem fim que lembra o sonho, mediante o qual fundaram as suas principais concepções». In Davi Arrigucci Jr., O Guardador de Segredos, 2010, Companhia das Letras, 2010, ISBN 978 853-591-655-3.

Cortesia de CdasLetras/JDACT