sábado, 21 de setembro de 2019

O Manuscrito do Imperador. Valeria Montaldi. «Estava seguro de ter feito a coisa certa: a fidelidade de Ezzelino era indiscutível, assim como a sua aversão ao papa. Um arrepio percorreu a espinha do imperador: aquele idiota arrogante!»

Cortesia de wikipedia e jdact

… destas cidades restarão o vento que as atravessa… In Bertolt Brecht

Parma. 1248
«(…) Depois de mandar matar o armeiro, Ezzelino começou a procurar o negociante. Os seus espiões haviam referido que, com toda a probabilidade, o homem se refugiara em Milão, onde mantinha comércio junto com um parente. Num primeiro momento, Frederico pensou em enviar um dos seus sicários para capturá-lo, mas depois mudou de ideia: aquela cidade, desde sempre inexpugnável, já lhe criara problemas demais. Seria melhor não divulgar a notícia da descoberta, e o vicário imperial era a pessoa mais adequada para manter a necessária discrição sobre toda a coisa. Além disso, para um homem que se rodeava de músicos e poetas e que gostava de conservar volumes raros e preciosos na sua biblioteca, seria uma honra executar aquela tarefa delicada em favor do imperador. Este ainda recordava a requintada feitura do afresco que Ezzelino mandara pintar no palácio de Bassano. Ao vê-lo, não conseguira evitar perguntar-se como era possível que na alma de um tirano tão feroz se alojasse tão grande sensibilidade para as artes liberais. Espantara-se naquele momento, mas agora aquela familiaridade com pintores e miniaturistas lhe seria útil: uma vez que tivesse nas mãos o tratado, Ezzelino seguramente encontraria alguém capaz de verificar se se tratava do original. De facto, pelo que Frederico sabia, nos nove meses passados após o furto os pergaminhos podiam ter sido copiados.
Estava seguro de ter feito a coisa certa: a fidelidade de Ezzelino era indiscutível, assim como a sua aversão ao papa. Um arrepio percorreu a espinha do imperador: aquele idiota arrogante! Se viesse a saber do manuscrito, Inocêncio IV lhe lançaria uma nova excomunhão: podia apostar que aquelas linhas usadas para ilustrar a vida das aves de rapina o irritariam profundamente. Como poderia o pontífice, que como todos os seus predecessores atribuía qualquer acidente natural à vontade divina, compreender a importância da observação científica? O que sabia dos precedentes tratados redigidos por estudiosos árabes sobre aquela matéria fascinante? Como podia imaginar a alegria do falcoeiro ao criar o pintainho até vê-lo tornar-se um falcão majestoso, capaz de voar milhas e depois voltar ao punho do seu dono com a presa ainda intacta no bico? Não, Inocêncio jamais compreenderia.
Havia anos, mandava fechar as escolas que ele, Frederico, tinha aberto, fazia perseguir por heresia médicos, astrólogos, homens de letras, repetia que era a Igreja quem tinha o primado sobre a ciência, como se esta última fosse uma sórdida forja geradora de demónios! Mas por que, meu Deus, aqueles malditos padres eram tão intolerantes com quem pretendesse usar a razão para explicar os fenómenos naturais? Por acaso era a vontade divina que os fazia comer, beber, arrotar, urinar, defecar? Levantou-se num salto. Sou eu o único rei!, gritou para a tenda vazia. Fui eu a ser consagrado com ceptro, anel e coroa, sou eu o ungido do Senhor, e não aquele maldito! Foi Deus quem me concedeu o privilégio do comando e eu o exercerei até ao meu último suspiro, com fé e razão! Pressionou com força as mãos sobre a escrivaninha: a raiva o fazia tremer. Respirou profundamente, até que o tremor cessou. Em seguida, em longos passos, saiu para a esplanada onde estava montado o acampamento». In Valeria Montaldi, O Manuscrito do Imperador, 2008, Grupo Editorial Record, 2011, ISBN 978-850-108-703-4.

Cortesia de GERecord/JDACT