sábado, 28 de setembro de 2019

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Não, não. Eu é que sei. Estou muito doente. Já pouco tempo resta para Nosso Senhor me chamar. Ainda bem que vieste. Desejava tanto aliviar a consciência, esta angústia que trago comigo»

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O galeão S. Mateus
«(…) Que fogoso cavalga o reizinho na montaria! Lida o cervo e o porco-montês como se já estivesse a combater o Mouro. Foste seu aio. Viste-o crescer nessa mania. Desde pequeno o tenho seguido no exercitar da espada, da lança, do estoque... Não admira tenha fortalecido mais todo o lado direito do corpo... Olhai! A matilha dos rafeiros, em latidos excitados, levantou duas feras do seu fojo de entre o canavial! Que corpulentas! Cuidado, Senhor! Está a rainha Catarina em seu leito deitada, cuidam-lhe as aias do aspecto. Ora graças a Deus!, diz a camareira-mor, aos pés da cama. Como Vossa Alteza está hoje bem melhor! Foi Nosso Senhor que a quis festejar neste dia catorze de Janeiro..., dia dos seus anos..., humedece-lhe uma açafata o rosto com água-de-rosas. Que linda está! De ontem para hoje rejuvenesceu dez anos.
Já a noite vem descendo e el-rei que não chega! Mandaram-lhe recado, como eu ordenei? Sim, Alteza. Logo de manhã. Não deve tardar. El-rei desembarca no cais do terreiro. Esperam-no cortesãos e fazem-lhe vénia. Tan hermoso deve estar el campo, Alteza, diz Juan Silva, enviado de Castela, que no pudiera dejar por menos causa que la indisposición de la reina. Ainda que fora isso, era já tempo de vir e de partir para África. Camareira, que passos são esses aí fora? El-rei que chega, Alteza. Retiram-se as aias, quando el-rei entra acompanhado do médico. A quentura desceu, vem informando o físico, a respiração tornou-se menos custosa, mas...
Senhora, abeira-se el-rei da avó, vim, mal me deram a notícia do vosso mal-estar. Mas Deus seja louvado, que vos venho encontrar com boa disposição no vosso aniversário. Ah, meu querido neto! Ainda me sinto muito fraca. Logo passará, vereis. E acrescentou: se assim o ordenardes, folgarei que se diga mandara Sua Alteza matar um fidalgo velho por lhe dizer as verdades tocantes a seu serviço. Bramei com ele, agastado, mas, abalado da resposta e do que a experiência e outras razões me mostravam e vencido agora do desvelo e autoridade de Fernando, disse-lhe enfim: ora vamos, já que porfiais, e fartar-vos-ei essa vontade. E ordenei se suspendesse, por então, a marcha da gente do reino. Honrosa resolução, em verdade, observou o arcebispo, com ar de dúvida, afagando um sobrolho crítico. Mas depois... Altivo de minha condição, arrogante, insensato, não desisti de meus planos. Adiados apenas. Prossegui os preparativos para a grande jornada. Meu tio Henrique, quando fui a Évora dar-lhe conta da empresa e rogar-lhe que a aprovasse, embora com brandura não deixou de me contradizer e recusou-se a ser regente durante a minha ausência. Minha avó Catarina, um mês antes de falecer..., estava eu em Salvaterra, era Janeiro de setenta e oito, uma terça-feira, dia catorze... vieram-me dizer que ela...
Não, não. Eu é que sei. Estou muito doente. Já pouco tempo resta para Nosso Senhor me chamar. Ainda bem que vieste. Desejava tanto aliviar a consciência, esta angústia que trago comigo, que me tira o sono e me não estanca as lágrimas... Vá, senhora, vá, disse el-rei, compreendendo-lhe o alcance. Acalmai. Já falámos muitas vezes desse assunto e eu... Com incontido vigor e determinação a rainha ripostou: pois é forçoso e urgente uma última vez ouvires o que tens evitado escutar... Que gesto de enfado esboçou el-rei!, pensou a camareira. Eu sei que contrario o teu pendor, continua dona Catarina. És muito novo e essa tua tenção de ganhar honra por teu próprio braço seria bem de louvar, não fosse estorvarem-no razões ponderosas. É a empresa honrosa? Não se duvida. Mas o tempo não é o disposto nem convinhável. És rei, és responsável por estes reinos e impérios e ainda não asseguraste descendência nem sucessor. Três pontos por que as leis divinas e humanas desaconselham de saíres de tua casa a fazer, em terras estranhas e sem seres provocado, guerra duvidosa...» In Fernando Campos, A Ponte dos Suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT