quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Marina. Carlos Ruiz Zafón. « Estava prestes a dar alguma resposta engenhosa, quando uma sombra imensa se espalhou sobre a mesa como uma nuvem de tinta. Minha anfitriã levantou os olhos e sorriu»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) A menção daquele nome invocou a visão da figura enorme de cabeleira branca que me surpreendeu na galeria do casarão dias antes. Germán? Meu pai.
E você é...?, perguntei. Filha dele. Quero dizer, como é o seu nome? Eu sei perfeitamente o que você queria dizer, replicou a menina. Sem uma palavra, montou na bicicleta e cruzou o portão da entrada. Antes de se perder no jardim, virou-se brevemente. Aqueles olhos estavam rindo da minha cara às gargalhadas. Suspirei e fui atrás dela. Um velho conhecido me deu as boas-vindas. O gato olhava para mim com o desprezo habitual. Desejei ser um dobermann. Atravessei o jardim escoltado pelo felino. Fui desviando daquela selva até chegar à fonte dos querubins. A bicicleta estava encostada na fonte e a sua dona tirava uma bolsa do cesto que ficava na frente do guiador.
Cheirava a pão fresco. A menina tirou uma garrafa de leite da sacola e ajoelhou-se para encher uma tigela que estava no chão. O animal correu disparado para o seu café da manhã. Dava a impressão de que aquilo era um ritual diário. Pensei que seu gato só comesse passarinhos indefesos, disse. Não, ele só caça. Não come. É uma questão territorial, explicou como se estivesse falando com uma criança. Ele gosta é de leite. Não é verdade, Kafka, que você gosta de leite? O kafkiano felino lambeu os dedos em sinal afirmativo. A menina sorriu calorosamente, enquanto acariciava o dorso do animal. Quando fez isso, os músculos das suas costas se desenharam nas dobras do vestido. Exactamente nesse instante, ela se virou e me surpreendeu olhando para ela e lambendo os lábios.
E você? Já tomou seu café da manhã?, perguntou. Neguei com a cabeça. Então deve estar com fome. Todos os bobos têm fome, disse. Venha, entre e coma alguma coisa. E bom estar de estômago cheio quando for explicar a Germán porque roubou o relógio dele. A cozinha era uma sala grande situada na parte de trás da casa. Os croissants que a jovem tinha comprado na pastelaria Foix, na Plaza Sarriá, constituíram a minha inesperada refeição. Trouxe também uma xícara enorme de café com leite e sentou-se na minha frente enquanto eu devorava aquele banquete com avidez. Olhava para mim como se tivesse recolhido um mendigo faminto da rua, com uma mescla de curiosidade, pena e medo. Ela mesma não tocou na comida. Já tinha visto você por aí algumas vezes, comentou sem tirar os olhos de cima de mim. Você e aquele garoto pequeno com cara de susto. Costumam atravessar a rua à tarde quando o internato dá uma folga. Às vezes, você vem sozinho, cantarolando distraído. Aposto que passam muito bem naquela masmorra...
Estava prestes a dar alguma resposta engenhosa, quando uma sombra imensa se espalhou sobre a mesa como uma nuvem de tinta. Minha anfitriã levantou os olhos e sorriu. Eu fiquei imóvel, com a boca cheia de croissant e os pulsos batendo como um par de castanholas. Temos visita, anunciou ela, divertida. Pai, esse é Oscar Drai, contumaz ladrão de relógios. Oscar, esse é Germán, meu pai. Engoli de uma só vez e me virei lentamente. Uma silhueta que me pareceu altíssima se erguia bem na minha frente. Vestia um terno de alpaca, com colete e gravata. Uma cabeleira branca penteada caprichosamente para trás caía sobre os seus ombros. Um bigode branco pintava o rosto marcado por ângulos cortantes ao redor dos olhos escuros e tristes. Mas o que realmente o definia eram as mãos. Mãos brancas de anjo, de dedos finos e intermináveis. Germán... Não sou ladrão, senhor..., articulei nervosamente. Tudo isso tem explicação. Se me atrevi a penetrar na sua casa foi porque pensei que estava desabitada. Mas uma vez dentro, não sei o que me deu, ouvi aquela música, vou, não vou, o caso e que fui e vi o relógio. Não pretendia pegá-lo, juro, mas me assustei e quando percebi que tinha carregado o relógio comigo já estava bem longe daqui. Quer dizer, não sei se expliquei direito...» In Carlos Ruiz Zafón, Marina, 1999, Planeta Editora, 2010, ISBN 978-989-657-119.1

Cortesia de PlanetaE/JDACT