quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Memória de Elefante. António Lobo Antunes. «Os polícias, ocupados a transportarem o ajudante de notário num cuidado de moços de fretes carregando um piano esquisito que tocava sem cessar a sonatina crivada de notas erradas do seu delírio…»

jdact e wikipedia

«(…) Passou o gabinete do dentista despovoador de gengivas a lutar aos ganidos contra um molar tenaz, e julgava-se já miraculosamente intacto na Urgência, porta de vidro fosco que lhe acenava como a bandeira de pano da chegada de uma corrida de bicicletas, quando um dedo perverso lhe tocou imperioso no intervalo das omoplatas, ossos salientes e triangulares que atestavam pela forma o seu passado de anjo oculto sob a fazenda do casaco num modesto pudor de origens divinas, como os bem-nascidos arrotam no fim do almoço por benévola concessão social a um mundo de silvas.
Meu caro, questionou uma voz nas costas dele, que me diz à conspiração dos comunistas?
Os polícias, ocupados a transportarem o ajudante de notário num cuidado de moços de fretes carregando um piano esquisito que tocava sem cessar a sonatina crivada de notas erradas do seu delírio de grandeza, abandonaram vilmente o médico junto ao arquivo onde habitava uma dama míope, de óculos da espessura de pisa-papéis, que lhe aumentavam os olhos até às proporções de hirsutos insectos gigantescos cercados de enormes patas de pestanas, à mercê de um colega baixinho à deriva no lago de cheviote do sobretudo, de chapéu tirolês cravado na cabeça à maneira de uma rolha num gargalo no intuito vão de impedir a tempestuosa fuga de bolhinhas gaseificadas das suas ideias. O colega trouxe à superfície o gancho de mão e em vez de acenar por socorro dependurou-se-lhe da gravata como um náufrago impaciente abraçado por engano a uma cobra de água azul com pintas brancas que se lhe desfazia no punho numa inércia mole de atacador. O psiquiatra pensou que toda a gente nesse dia o queria separar de um dos últimos presentes que a mulher lhe dera no desejo inútil de melhorar a sua aparência de noivo de província congelado numa postura hirta de fotografia de feira: desde a adolescência que trazia consigo, colado à assimetria das feições, o ar postiço e triste dos mortos de família nos álbuns de retratos, de sorrisos diluídos pelo iodo do tempo. Meu amor, falou dentro de si mesmo apalpando a gravata, sei que isto não alivia nem ajuda mas de nós dois fui eu o que não soube lutar: e vieram-lhe à memória longas noites na praia desfeita dos lençóis, a sua língua desenhando devagar contornos de seios iluminados de uma rede de veias pela primeira luz da aurora, o poeta Robert Desnos a agonizar de tifo num campo de prisioneiros alemão murmurando É a minha manhã mais matinal, a voz de John Cage a repetir Every something is an echo of nothing, e a forma como o corpo dela se abria em concha para o receber, vibrando tal as folhas dos cumes dos pinheiros agitados por um vento invisível e tranquilo. O colega pequenino, com a pluma do chapéu tirolês a oscilar à laia de agulha de um contador Geiger que encontrasse minério, obrigou-o a encalhar numa esquina de parede, caranguejo doente filado pela teimosia de um camaroeiro tenaz. Os membros pulavam no sobretudo movimentos brownianos sem objectivo definido de moscas na mancha de sol de uma cave, as mangas multiplicavam-se em gestos consternados de orador sacro: os gajos avançam, hã, os comunistas?
Na semana anterior o médico vira-o procurar de cócoras microfones do KGB ocultos sob o tampo da secretária, prontos a transmitirem para Moscovo as decisivas mensagens dos seus diagnósticos. Avançam, garanto-lhe eu, balia o colega a rodopiar de inquietação. E esta choldra, a tropa, o zé-povinho, a igreja, ninguém se mexe, borram-se de medo, colaboram, consentem. Por mim (e a minha esposa sabe) o que me entrar em casa leva um tiro de caçadeira pelos cor… Olarila. Você já leu os cartazes que puseram no corredor com o retrato do Marx, o Catitinha da economia, a despejar as suíças em cima da gente? E chegando-se mais, confidencial: eu topo que você anda lá por perto se é que não alinha com a cambada, mas pelo menos lava-se, é correcto, o seu pai é professor da Faculdade. Conte-me cá: vê-se a comer à mesa com um carpinteiro? Na minha infância, pensou o psiquiatra, as pessoas escalavam-se em três categorias não miscíveis rigorosamente demarcadas: a das criadas, dos jardineiros e dos choferes, que almoçavam na cozinha e se levantavam à sua passagem, a das costureiras e das senhoras de tomar conta, com direito a mesa à parte e à consideração de um guardanapo de papel, e a da Família, que ocupava a sala de jantar e velava cristãmente pelos seus mujiques (pessoal, chamava-lhes a avó) oferecendo-lhes roupa usada, fardas, e um interesse distraído pela saúde dos filhos». In António Lobo Antunes, Memória de Elefante, 1979, 1983, Publicações dom Quixote, BIS, Grupo Leya, 1983, ISBN 978-989-660-091-4.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT