quarta-feira, 25 de setembro de 2019

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Mas o cão levantou-se e, a dar ao rabo, aproximou-se do desconhecido, que, como habituado, lhe fez uma festa. Estes bichinhos sabem quem é deles amigo…»

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O galeão S. Mateus
«Flutuava sobre a laguna o vazio e o nada, cerrara-se uma espessura de bruma que o sol da manhã nascente, sem a conseguir romper, mal dourava de um rubor genesíaco. Na humidade viscosa, cortada por manso respiro de asas e pios de gaivotas, entranhara-se o fedor que a maré vaza destilava das cloacas da cidade invisível. Grande Canal, vem da cerração uma voz. Estamos a chegar. Como fantasma a proa da gôndola surge das entranhas do nevoeiro e logo a embarcação acosta ao cais. O homem apeou-se: arrivederci, buon uomo.
Que palidez!, pensa o gondoleiro. Como rebrilham aqueles olhos no escuro do capuz! A barba a grisalhar antes do tempo, os dedos brancos da mão, como de cadáver mas bem cuidados, aferrados ao bordão, a outra a acenar leve adeus... É prà i algum grande senhor, apesar do burel e do desalinho... Arrivederci, Eccellenza. Vê afastar-se, a esvoaçar engolida na névoa, a sombra da capa de romeiro, ouve-lhe o eco dos passos sem imagem esbater-se na fundura cinzenta em direcção a São Marcos.
Sente um arrepio: uma alma do outro mundo! Persigna-se e abala dali. Num canto da piazza o homem bateu a uma porta. Um criado vem abrir. Sua Eminência, o arcebispo de Espálato? Quem devo anunciar? Um peregrino acabado de chegar da Terra Santa. Português. Desejo falar a Sua Eminência. Matéria da máxima importância. O criado foi dentro e não tardou a reaparecer: Sua Eminência aguarda-vos. Um átrio lajeado de mármores, paredes ornadas de retratos a óleo de prelados de ar estático, cadeirões encourados, pregueados de cobre, em nichos dourados imagens de santos, peanhas com estátuas de deuses pagãos, um busto do imperador Diocleciano, ao fundo escadaria sumptuosa. Por aqui, senhor, disse o mordomo, começando a subir. O arcebispo estava sentado à secretária. Debaixo, enrolado a seus pés, um dálmata levantou o focinho e as pintas negras rosnaram. Calado, Split!
Mas o cão levantou-se e, a dar ao rabo, aproximou-se do desconhecido, que, como habituado, lhe fez uma festa. Estes bichinhos sabem quem é deles amigo, sorriu o prelado. Que me quereis falar... Era um homem magro e seco, as pontas dos cabelos a fazerem coroa em roda do solidéu, a barba encanecida, pontiaguda. O tamanho do tronco inculcava ser alto. Deus vos cubra de graças por me terdes recebido, Eminência. A seu lado, de pé, um cónego de sotaina preta à entrada do peregrino suspendera o gesto de apresentar ao superior alguns papéis. ... peregrino..., português..., mirava-o o prelado. Vindes da Terra Santa?
Sua Eminência o arcebispo de Espálato tem na sua frente o homem mais desgraçado que jamais se viu. Remirou-o o arcebispo, a magreza na estatura alçada, na barba rala o loiro riscado de fios de prata, a postura mal ocultando na capa de romeiro traços de altivez... Falai, disse. Ouvistes certamente contar daquele grande destroço que foi para a cristandade a batalha do rei de Portugal contra os Mouros? Quem não ouviu? Deu brado em todo o mundo. Alcácer Quibir, lembrou o cónego. Grande descalabro, sim, continuou o arcebispo. O exército cristão destroçado, o rei morto... O rei não morreu. Que dizeis? O rei não morreu?, repetia o cónego abismado. Como o podeis afirmar, se Filipe de Espanha o sepultou com solenes exéquias em Lisboa? O rei está vivo. Sou a única pessoa neste mundo que o pode testemunhar. Como assim?
Todos estes anos, desde aquele fatal fim de tarde, nunca dele me apartei. As suas angústias foram as minhas angústias, as suas dores, as minhas dores..., suspendeu-se, a garganta embargada, os olhos aguados, depois continuou: a sua humilhação, a minha humilhação... Mas vós viestes sozinho. Onde está o rei? O rei e eu... Este homem é louco!, exclamou o cónego. O arcebispo levantou-se, estendeu a mão ao acólito a suster-lhe a fala: estais a querer dizer-me... Sim, Eminência. O arcebispo deu alguns passos na sala com ar concentrado. Parou em frente do estrangeiro e disse: uma enormidade! Como o poderíeis provar? É um louco!, repetia o cónego. Rei sem coroa, sem ceptro, sem anel..., e sem reino, podeis acrescentar, tornou o peregrino com triste dignidade mas um lampejo de majestade no olhar e na voz. E, como o arcebispo hesitasse em falar, continuou: compreendo a vossa perplexidade e descrença. Um rei não aparece assim, caído do nada, vestido de peregrino, em casa de um arcebispo longínquo..., e essa batalha foi já há muito tempo, lembrava o cónego». In Fernando Campos, A Ponte dos Suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1
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Cortesia de Difel/JDACT