quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

A Filha do Papa. Luís Miguel Rocha. «Niklas desorientou-se um pouco, mas Luka colocou-lhe uma mão possante no ombro e indicou-lhe o caminho. Por aqui. Atravessamos ali à frente»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Alguns filamentos brancos emprestavam ao cabelo um ar grisalho que lhe assentava bem. Era o encanto dos 45 anos que para ele lhe era indiferente, mas fazia as mulheres olharem uma segunda vez para se desiludirem com aquele friso branco no colarinho, o cabeção, sinal de relação, pretensamente exclusiva, com Deus Pai Todo-poderoso, Criador do Céu e da Terra. Caminhava a passos firmes, senhores de si, que faziam os cabelos loiros do pupilo, com metade da idade, arrepiarem-se de reverência e temor. Lembra-te, Niklas, avisou Luka com uma sedutora voz tonitruante, não lhe dirijas a palavra a não ser que ele ta dirija a ti. Certamente, professor, respondeu, sumido, o jovem. As vielas ao entardecer perdiam as pessoas. Restavam turistas, a maioria de mochila às costas, roupas descomprometidas com casacos por cima, máquina fotográfica pronta a disparar e olhos de estupefacção. A luz alaranjada do sol moribundo que se dignara aparecer naquele dia sem aquecer os corpos tingia as fachadas dos edifícios de um tom encantador, carregado de impressões, que hipnotizava os estrangeiros que passavam. Apesar de estrangeiros, Luka e Niklas não eram turistas, e passavam indiferentes. Prosseguiam a caminhada tenaz com passos gigantes, mais o primeiro, que obrigava o mais novo a esticar bem as pernas para o acompanhar. Viraram à esquerda na Via dei Santi Apostoli e percorreram os poucos metros da rua para depois virarem à direita na Via Cesare Battisti. Seguiram em frente, passando a Piazza Venezia, entraram na Via del Plebiscito, ignorando o colégio da Companhia de Jesus, que ficava do lado esquerdo, e a Igreja de Jesus, na piazza com o mesmo nome, que se erguia ao fundo, e desembocaram no concorrido Corso Vittorio Emanuele II, onde ainda havia bastante trânsito. Faltavam vinte minutos para as sete da tarde. Seriam precisas mais algumas horas para esvaziar as principais artérias da cidade dos milhares de veículos que as entupiam durante o dia.
Niklas desorientou-se um pouco, mas Luka colocou-lhe uma mão possante no ombro e indicou-lhe o caminho. Por aqui. Atravessamos ali à frente. Referia-se a uma passagem para peões a cerca de cem metros. Os homens de Deus seguiam, prudentemente, as regras dos homens…, quase sempre ou sempre que podiam, assim Deus o permitisse. A mão no ombro guiava Niklas, como uma orientação divina, mostrando-lhe o trilho do Senhor, que muito precisaria assim que soubesse para onde se dirigiam. Apesar do temor reverencial sentia-se bem com ele, ou não fosse Luka o seu tutor. Atravessaram a movimentada rua na passagem para peões que Luka indicara e prosseguiram no mesmo sentido, o do Largo di Torre Argentina. Uma vez lá, meteram pela Via del Sudario, junto ao terminal do eléctrico, uma viela estreita que findava na Piazza Vidoni. Depois voltaram à direita, retornando ao Corso Vittorio Emanuele II.
Cravada como se sempre ali tivesse estado erguia-se imponente a Basílica de Sant’Andrea della Valle, com a fachada barroca a apontar para o céu. E a verdade é que pernoitava naquele exacto local, na Corso Vittorio Emanuelle II, defronte para a piazza com o mesmo nome da basílica, há cerca de 350 anos e vira aquela rua ter outros nomes antes deste, enquanto a sua estrutura permanecia imutável, apenas consumida pelo tempo, como hoje. Luka e Niklas subiram os seis degraus até à porta verde. Niklas tentou abri-la. Estava trancada. Está fechada. Não para nós, murmurou Luka enquanto olhava em redor para o movimento da rua. Em seguida, cerrou o punho e bateu duas vezes com vigor. Uma. Duas. Luka voltou a desviar a sua atenção para a rua, ignorando a porta da basílica. E agora, professor?, perguntou Niklas, a medo. Agora esperamos, respondeu o padre alemão sem fitar o jovem.
Duas mulheres, na casa dos 30 anos, passaram e lançaram um sorriso a Luka que lhes retribuiu. O fruto proibido…, sibilou, entre dentes, em alemão. Buon pomerigio, senhor padre. Niklas evitou olhar para as mulheres. Um ressentimento antigo. Provavelmente alguma delas, não estas, terá sido a responsável pelo seu apego à batina e pela oferta do seu coração a Deus Nosso Senhor, ou então não queria simplesmente cair em tentação. Ainda era muito novo para quebrar o voto de castidade que todos vinculava a esta provação celibatária. Terão ouvido, professor? Niklas referia-se à porta da basílica e às pancadas que Luka havia dado na madeira. Nesse preciso momento, ouviu-se a tranca rabujar com a ferrugem. Um homem de idade, descabelado e mal-encarado, surgiu do interior». In Luís Miguel Rocha, A Filha do Papa, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-004-411-2.

Cortesia de PEditora/JDACT