quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

O Último Papa. Luís Miguel Rocha. «… de vida dos habitantes de Escariz, na região trasmontana de Chaves. Casas de pedra mal isoladas, escuras, sem electricidade, sem água…»

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Conclave
26 de Agosto de 1978
«(…) Não posso lhe dizer o que fazer. Apenas que, aconteça o que acontecer, não abra essa porta. Mantenha os papéis sempre consigo. Lembra-se do que a avó costumava dizer-lhe quando não queria sair pela porta dos animais? Pela porta da casa, que por acaso também era a dos animais, você quer dizer. Recorde o que ela costumava lhe dizer. Volte a ligar-me mais tarde. Use outros meios. A chamada se interrompe sem um adeus ou um até logo.
Três pancadas fortes na porta despertam-na para as palavras do pai: o que a avó dizia quando ela chorava por não querer passar pelas enormes vacas que barravam a entrada comum. A mãe, inglesa legítima, nada habituada àquelas andanças, achava graça no modo de vida dos habitantes de Escariz, na região trasmontana de Chaves. Casas de pedra mal isoladas, escuras, sem electricidade, sem água encanada, sem gás encanado - sem gás de nenhuma espécie, a bem da verdade. As origens do pai, às quais ele tanto gostava de regressar todos os anos. Talvez já não conseguisse passar mais do que uma semana naquele lugar perdido no tempo, mas, em cinquenta e duas semanas, uma tinha de ser em Escariz para visitar a família e os amigos de outrora. Lembra-se de como odiava passar por aqueles animais enormes, com o rabo balançando no ar rente aos seus cabelos e com os enormes focinhos ruminantes que davam a impressão de terem sempre alguma coisa na boca. A avó tinha de afastá-los para a menina passar. Às vezes era o pai, quando a avó estava ocupada fazendo pão ou bolos de carne, ou fora, no campo, cultivando ou colhendo os legumes da época. Ou colhendo uvas, quando era tempo disso. O pai também os afastava com jeito. Não demonstrava nenhum medo deles. A partir de certa idade, a avó deixou de afastar os animais. Afaste-os você mesma, dizia. Já é hora de deixar de ter medo deles, completava. Se não fazem mal a mim que sou velha, também não farão a você. E franzia as sobrancelhas para a menina, como para mostrar o óbvio. Mas tenho medo que me pisem. Bem, faça como quiser. Mas acredite: por mais medo que tenha, elas têm bem mais. E levantava-se do banco de madeira em que acabara de tirar leite puro num balde de lata. Dirigia-se à porta e, antes de fechá-la, fitava a menina. Vou buscar capim para os animais. Se quiser ir comigo, basta fazer como faço. Passe e ande. Faça de conta que não vê animal nenhum, menina. E fechava a porta, deixando Sarah entregue à imensidão animalesca. Seis vacas que aqueciam a casa durante todo o Inverno. No início, Sarah ficava imóvel, sem coragem para enfrentar o espaço que a separava da porta comum. Naqueles dias a avó voltava a abrir a porta, como o anjo zelador do bem-estar da menina.
Ou você pode sair pela janela lá de cima. Há sempre solução para tudo. Só não há para a morte. E a menina corria, subia os degraus em pedra grosseira e saía pela janela de um dos quartos. Mais tarde, começou a arriscar e percorria o chão de terra entre o final das escadas e a porta comum, olhando para o lado oposto ao dos animais. Ignorando-os, como dizia a avó. E acabou conseguindo fazê-la mais vezes, até se tomar um acto sem importância. Graças à avó que... Há sempre solução para tudo. Foram essas as palavras da avó. E era isso que o pai lhe tentou transmitir numa espécie de mensagem cifrada. Não pode sair pela porta; arranje outra saída. Larga o telefone móvel no sofá e pega os papéis enviados pelo tal Valdemar Firenzi. Da bolsa, colocada ao lado do computador, retira a carteira e, desta, os cartões de crédito, mulher prevenida vale por duas, e põe tudo no chão. Avança para as escadas, olhando para trás, na direcção da porta. Quem quer que esteja do lado de fora mexe agora na maçaneta. O seu coração dispara. Tira apressadamente os ténis que havia calçado depois do banho. Ainda bem que optara por vestir roupa fresca, leve e prática, calça de ginástica e um blusão com capuz, muito melhor do que se tivesse optado pelo roupão. Trajes desportivos básicos em detrimento do consolo prazeroso do roupão. Com os ténis na mão, sobe ao primeiro andar. A madeira dos degraus range e a denuncia, mas o facto de serem meias e não solas a pisarem as escadas acarpetadas faz toda a diferença. Esforça-se também por controlar o peso que emprega em cada perna, a cada passo, de modo que dê a ideia de um ranger natural de madeira velha, uma espécie de estalo que se ouve a toda hora nesse tipo de casa». In Luís Miguel Rocha, O Último Papa, Saída de Emergência, 2006, ISBN 978-972-883-969-7.

Cortesia SEmergência/JDACT