quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

O Último Judeu. Noah Gordon. «Depois tirou da sacola surrada uma pequena caixa de madeira. Quando ela foi aberta, o padre Sebastián viu um embrulho de seda cor de sangue, extremamente perfumado…»

Cortesia de wikipedia e jdact

O Primeiro Filho.
Toledo. Castela. 23 de Agosto de 1489.
O Filho do Ourives. Dádiva de Deus
«(…) O ourives e Sebastián discutiram os detalhes da composição do relicário, barganharam um preço e fecharam o acordo. Chegou a ocorrer ao padre como seria bom se a alma daquele judeu pudesse ser ganha para Cristo como resultado da encomenda que o próprio Senhor fizera necessária. Os esboços que Helkias apresentou revelaram que ele não era apenas um artesão, mas também um artista. O interior da taça, a base quadrada e a tampa eram feitas tanto de folheado de prata quanto de prata maciça. Helkias propôs confeccionar as figuras das duas mulheres de filigranas rendilhadas de prata. Apenas as suas costas seriam vistas, graciosas e nitidamente femininas, a mãe à esquerda, a filha não inteiramente uma mulher adulta, mas identificada por uma aura em volta da cabeça. Por todo o cibório Helkias colocaria uma profusão das plantas que teriam sido familiares a Chana: parreiras e oliveiras, romãzeiras e tamareiras, figueiras e trigais, campos de cevada e espelta. Do outro lado da taça, indicativa das coisas a vir e afastada, como tempo futuro, das duas mulheres, Helkias moldaria uma cruz em prata maciça, um símbolo surgido bem após a vida de Chana. O menino seria gravado em ouro aos pés da cruz.
Padre Sebastián temera que os dois doadores retardassem a aprovação do projecto ao querer impor certas concepções próprias, mas para sua satisfação tanto Juan António quanto Garci Bórgia pareciam ter ficado muito bem impressionados pelos desenhos que Helkias lhes submetera. Poucas semanas depois, tornou-se claro para ele que o iminente êxito do mosteiro não era mais segredo. Alguém, Juan António, Garci Bórgia ou o judeu, teria se gabado da relíquia. Ou talvez fosse alguém em Roma, falando com pouca discrição; às vezes a Igreja era uma aldeia. Pessoas da comunidade religiosa de Toledo que nunca tinham lhe dado atenção, agora o olhavam de frente, embora ele pudesse observar que havia hostilidade naqueles olhares. O bispo-auxiliar, Guillermo Ramero, foi até ao mosteiro e inspecionou a capela, a cozinha e as celas dos frades. A eucaristia é o corpo de Cristo, disse ele a Sebastián. Que relíquia é mais poderosa que essa? Nenhuma, Excelência, Sebastián respondeu mansamente.
Se uma relíquia da Sagrada Família é concedida a Toledo, devia ser confiada à posse da Sé, disse o bispo, não de uma das instituições que lhe são subordinadas. Desta vez Sebastián não respondeu, mas enfrentou sem piscar o olhar de Ramero, toda mansidão esquecida. O bispo torceu a cara e retirou-se com a sua comitiva. Antes mesmo que o padre Sebastián conseguisse decidir-se a compartilhar a grave novidade com frei Júlio, o sacristão da capela ficou sabendo da coisa através de um primo padre, que era do escritório diocesano para o culto. Logo se tornou evidente para Sebastián que todos sabiam, incluindo os seus próprios frades e noviços. O primo de frei Júlio disse que as diferentes ordens estavam reagindo à notícia com preparativos para drásticas acções. Os franciscanos e os beneditinos já tinham enviado fortes mensagens de protesto a Roma. Os cistercienses, criados em torno do culto da Virgem, ficaram furiosos ao ver uma relíquia da mãe Dela ir para um mosteiro dos jeronimitas e arranjaram um advogado para defender os seus direitos em Roma.
Mesmo dentro da ordem jeronimita, foi sugerido que uma relíquia tão importante não devia ir para um mosteiro tão humilde. Ficou claro para o padre Sebastián e para frei Júlio que se algum acontecimento detivesse a entrega da relíquia, o mosteiro seria colocado numa situação extremamente precária, por isso o prior e o sacristão passaram muitas horas ajoelhados, rezando juntos. Finalmente, num dia quente de Verão, um homem corpulento e barbado, vestido à maneira pobre de um trabalhador rural, chegou ao Mosteiro da Assunção. Chegou na hora da sopa boba, que aceitou com a mesma avidez dos indigentes famintos. Quando engoliu a última gota do caldo ralo, chamou o padre Sebastián pelo nome e, quando ficaram sozinhos, identificou-se como o padre Tullio Brea, da Santa Sé de Roma, logo transmitindo as bênçãos de Sua Eminência, o cardeal Rodrigo Lancol.
Depois tirou da sacola surrada uma pequena caixa de madeira. Quando ela foi aberta, o padre Sebastián viu um embrulho de seda cor de sangue, extremamente perfumado, e no interior do embrulho o pedaço de osso que viera de tão longe. O padre italiano só passou a Véspera com eles, a mais exultante e agradecida Véspera já celebrada no Mosteiro da Assunção. O cântico mal terminara quando o padre Tullio, tão discretamente quanto havia chegado, fez a sua partida nocturna. Nas horas que se seguiram, o padre Sebastián pensou melancolicamente como era preciso ter a cabeça fresca para servir a Deus perambulando disfarçado pelo mundo. Admirou a lucidez de se enviar um bem tão precioso por um mensageiro humilde e solitário e, num recado ao judeu Helkias, sugeriu que o relicário, quando estivesse pronto, fosse entregue por um portador comum, depois da noite cair. Helkias concordara, despachando o seu filho como outrora Deus tinha feito, e com o mesmo resultado. Meir era um garoto judeu e, portanto, nunca poderia entrar no Paraíso, mas padre Sebastián rezou pela sua alma. A chacina e o roubo lhe revelaram até que ponto estavam sitiados os protectores da relíquia, e ele rezou, também, pelo sucesso do médico que pusera ao serviço de Deus». In Noah Gordon, O Último Judeu, 2000, Uma História de Terror na Inquisição, Editora Rocco, 2000, ISBN 978-853-251-171-6.

Cortesia de ERocco/JDACT