quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

A Mentira Sagrada. Luís Miguel Rocha. «Sabes muito bem porquê, querida. Sorriu. Não temos propriamente sido castos nos últimos tempos. Sarah nem sequer queria pensar nisso. Uma gravidez…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Vaticano. 19 de Abril de 2005
«(…) No quarto do Grand Hotel Palatino, Sarah sentiu-se indisposta. Por várias vezes as náuseas subiram à boca, ocas, sem conteúdo. Puxava o vómito sentada no chão do quarto de banho com a cabeça no rebordo da sanita. Nada. Francesco assistia impotente. Queres que chame um médico?, perguntou preocupado. Não. Isto já passa, respondeu ela preparando-se para puxar novamente. Não lhe dissera que isto já não era de agora. Os sintomas já se vinham fazendo sentir desde Londres. Vou pedir um chá quente. Vai-te fazer bem. Pegou no auscultador do telefone que tinha no interior do quarto de banho. Sim. Faz isso. Obrigada. E puxou pelo vómito que não trazia nada. Uma aflição oca, um mal-estar vazio. Ai. Que raio, lamentou-se. Francesco fez o pedido e pousou o auscultador. Depois aninhou-se e abraçou Sarah. Queres ir para a cama?, inquiriu carinhosamente. Deixa só ver se isto já acalmou. Sarah sabia que acalmava sempre. Durava alguns minutos e depois era como se nada tivesse acontecido. Francesco fitou a namorada, debruçada sobre a sanita como alguém que se embriagava todas as noites. Não deixava de sentir um enternecimento, uma necessidade de a fazer sentir-se bem. Fitou-a seriamente. Sarah, disse a medo. Sei que não é o momento propício, mas talvez fosse melhor irmos a uma farmácia, contemplou a reacção dela. Porquê? O enjoo acalmara.
Sabes muito bem porquê, querida. Sorriu. Não temos propriamente sido castos nos últimos tempos. Sarah nem sequer queria pensar nisso. Uma gravidez não estava nos seus planos neste momento. Não que tivesse alguma coisa contra Francesco, nada disso, ele seria um pai exemplar, mas...
Vou ao médico quando regressarmos, propôs ela. Tens a certeza?, Francesco mirava-a com ar condescendente. Sim, tenho. Depois de amanhã resolvemos isso. Ajuda-me a levantar, por favor. Francesco elevou-se puxando-a consigo e abraçou-a com força. Estou contigo para o que der e vier. Não te deixarei ir para comprar cigarros, pronunciou a sorrir. Sarah comprimiu-se de encontro ao peito dele e fechou os olhos. Uma lágrima derramou-se na camisa de Francesco. Sentia-se perdida, e apesar do italiano lindo que lhe afiançava o amor, sentia-se sozinha, sem ninguém que a amparasse... Excepto Francesco, o deus italiano, de Ascoli que oferecera o seu coração à luso-britânica. Nesse momento ouviu-se uma pancada leve na porta. Deve ser o serviço de quartos, disse Francesco. Estás bem, querida?
Olhou para o rosto e limpou-lhe os olhos marejados. Beijou-a na testa. Sarah olhou-se ao espelho, libertou-se do abraço de Francesco e colocou as duas mãos sobre o lavatório, fitando-se, as imperfeições, os olho vermelhos, a lividez do rosto. Estou bem, Francesco. Atendes por favor? Vou só lavar o rosto, pediu continuando a avaliar-se ao espelho. Claro. O deus italiano anuiu e foi abrir a porta onde alguém tornara a bater com um pouco mais de força. Já vai, gritou em italiano antes de sair do quarto de banho. Sarah massajou os olhos com os dedos na esperança que quando os abrisse novamente visse outra mulher à sua frente. Outra cor. Nova disposição. Vontade de seguir em frente. Aquela vontade férrea que a acompanhava quando deixou Rafael no bar há seis meses e passou assim que a fúria e a raiva se esfumaram. Ele deixara-a seguir o seu caminho. Não tornara a ligar, nem a procurá-la. A protecção que Rafael lhe conferia dissolveu-se. Tinha saudades dele, mesmo dos silêncios prolongados. Quando olhava pela janela e não o via, mas sabia que ele andava por ali, como um anjo-da-guarda. Tudo isso terminara há seis meses, depois daquela conversa de um só sentido no Walker's Wine and Ale Bar. Estaria em Roma ou em alguma missão perigosa por esse mundo? Às vezes dava por si a pensar nisso. Apetecia-lhe ligar para ele. Saber como estava. Se estava tudo bem na paróquia dele, como corriam as aulas na universidade. E depois caía em si... E no ridículo da situação. Olá Rafael Queria saber se estás bem. E os meninos na tua paróquia? Os teus alunos? Olha, ainda te amo. Toda essa diarreia mental parou com a voz de Francesco que vinha do quarto. Ah! Acho melhor vires aqui, Sarah. Sarah passou água pelo rosto e enxugou-o com uma toalha. Foi ao quarto e viu Francesco à porta. O que foi? Acercou-se da porta e viu um prelado jovem, batina negra, tez negra, expressão circunspecta. É para ti, explicou Francesco. Boa noite, cumprimentou Sarah. Boa noite, menina Sarah. Pediram-me que viesse buscá-la. Pediram-lhe? Quem pediu? Que coisa mais estranha. Não estou autorizado a revelar. Lamento, desculpou-se o jovem padre.
A curiosidade jornalística sobrepôs-se ao temor. Calçou-se e pegou no casaco. Já venho. Queres que vá contigo?, voluntariou-se o deus italiano. Sarah fitou o jovem clérigo e analisou-o durante uns instantes. Não. Está tudo bem. Desceram no elevador até ao piso da recepção. Já era noite. Olhou em redor e não viu ninguém. Nem na recepção, que costumava ter sempre alguém atrás do balcão pronto para atender ao hóspede mais incauto ou curioso, estava alguém. Parecia um hotel despido de vida. Como se o mundo tivesse parado durante alguns instantes e fosse desprovido de gente». In Luís Miguel Rocha, A Mentira Sagrada, Porto Editora, 2011, ISBN 978-972-004-325-2.

Cortesia de PEditora/JDACT