terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

O Último Judeu. Noah Gordon. «Com muita delicadeza, o tio dissera que se Lancol pudesse enviar uma relíquia para o padre espanhol que se tornara seu parente pelo casamento, isso iria lhe garantir a adulação de toda Castela»

Cortesia de wikipedia e jdact

O Primeiro Filho.
Toledo. Castela. 23 de Agosto de 1489.
O Filho do Ourives. A Dádiva de Deus
«(…) O Mosteiro da Assunção era extremamente pobre. Não tinha terra própria, salvo o diminuto terreno onde se localizava, mas arrendava um bosque de oliveiras e, como acto de caridade, Juan António permitiu que os frades plantassem videiras nos cantões e nas orlas das terras dele. Mas o mosteiro conseguia pouco dinheiro em donativos de Juan António ou de qualquer outra pessoa e não atraía noviços ricos para as lidas do serviço divino. Contudo, após a morte do padre Jerónimo Degas, Sebastián Alvarez sucumbiu ao pecado da vaidade quando os frades o elegeram prior, embora ele suspeitasse que a honra se devia ao facto de ser irmão de Juan António. Os primeiros cinco anos na direcção do mosteiro tinham-no abatido, minado o seu ânimo, mas a despeito da dolorosa insignificância, o padre ousara sonhar. A gigantesca ordem cisterciense fora iniciada por um punhado de homens dedicados, menos numerosos ainda e mais pobres que seus próprios frades. Sempre que o número daqueles monges de túnicas brancas de uma comunidade cisterciense chegava a sessenta, doze saíam para começar um novo mosteiro. Foi assim que se espalharam por toda a Europa em nome de Jesus. Padre Sebastián dizia a si mesmo que o seu modesto mosteiro podia fazer o mesmo. Bastava que Deus indicasse o caminho.
No ano do Senhor de 1488, o padre Sebastián ficou empolgado (e a comunidade religiosa de Castela ganhou novo vigor) com um visitante vindo de Roma. O cardeal Rodrigo Lancol tinha raízes espanholas, tendo nascido perto de Sevilha e sido baptizado como Rodrigo Bórgia. Fora adoptado, quando jovem, pelo seu tio, o papa Calisto III, sendo criado para ser um homem a temer, alguém extremamente poderoso dentro da Igreja. A família Alvarez vinha há muito tempo revelando-se amiga e aliada dos Bórgia e os fortes laços entre as duas famílias tinham sido fortalecidos pelo casamento de Elienor Bórgia com Juan António. Devido à união com os Bórgia, Juan António se tornara da noite para o dia uma figura popular nos eventos da corte; dizia-se que era um favorito da rainha. Elienor era prima-irmã do cardeal Lancol. Uma relíquia, Sebastián dissera a Elienor. Ele abominava ter de pedir alguma coisa à cunhada, de quem não suportava a presunção, a hipocrisia e o espírito de vingança que vinha à tona quando a irritavam.
A relíquia de um mártir, talvez de um dos santos menos importantes. Se Sua Eminência pudesse ajudar o mosteiro a obter uma tal relíquia, todos os nossos problemas estariam resolvidos. E tenho a certeza de que ele viria em nosso socorro a um simples pedido seu. Ah, eu não poderia... Elienor protestou. Não obstante, Sebastián foi-se tornando mais atrevido e mais insistente à medida que ia chegando a hora da visita de Lancol. Finalmente, ela amoleceu. Para livrar-se de um aborrecimento e exclusivamente em consideração ao marido, acabou prometendo ao irmão de Juan António fazer o que fosse humanamente possível para favorecer a sua causa. Era voz corrente que o cardeal ficaria hospedado em Cuenca, na propriedade do irmão do pai dela, Garci Bórgia Junez. Vou falar com o tio e pedir que ele faça isso, ela prometeu a Sebastián. Antes de partir da Espanha, o cardeal Lancol oficiou na catedral de Toledo uma missa assistida por cada frade, padre e prelado da região. Após o serviço, Lancol foi rodeado dos conhecidos que vinham despedir-se. Tinha a mitra de cardeal na cabeça, o báculo (um grande cajado de pastor) na mão e, em volta do pescoço, o pálio que lhe fora dado pelo papa. Sebastián viu-o de longe, como se estivesse experimentando outra visão. Após a missa, não procurou abordar Lancol. Elienor informara que Garci Bórgia Junez já fizera o pedido. O tio destacara que cavaleiros e soldados de todos os países da Europa tinham atravessado a Espanha após cada uma das grandes cruzadas. Antes de retornarem a casa, porém, despojavam o país das relíquias sagradas, desenterrando os ossos dos mártires ou santos, pilhando quase abertamente cada igreja ou catedral ao longo dos seus caminhos.
Com muita delicadeza, o tio dissera que se Lancol pudesse enviar uma relíquia para o padre espanhol que se tornara seu parente pelo casamento, isso iria lhe garantir a adulação de toda Castela. Sebastián sabia que agora o assunto estava nas mãos de Deus e dos seus devidos servidores em Roma. Os dias passaram devagar. A princípio ele se imaginava recebendo uma relíquia com poder de atender às preces cristãs e com a extremosa compaixão de curar os aflitos. Tal relíquia atrairia devotos e donativos de longe. O pequeno mosteiro se transformaria num grande e próspero mosteiro, onde o prior se tornaria... À medida que os dias se transformavam em semanas e meses, ele se viu obrigado a pôr o sonho de lado. E quando já perdera quase toda a esperança, foi convocado aos gabinetes da Sé de Toledo. A mala postal que Roma mandava a Toledo duas vezes por ano acabara de chegar. Entre outras coisas, continha uma mensagem lacrada para o padre Sebastián Alvarez do Mosteiro da Assunção». In Noah Gordon, O Último Judeu, 2000, Uma História de Terror na Inquisição, Editora Rocco, 2000, ISBN 978-853-251-171-6.

Cortesia de ERocco/JDACT