domingo, 23 de fevereiro de 2020

A Relíquia. Eça de Queirós. «Ai de mim! Um dia veio, porém, em que a Adélia, em vez de me chamar morcão, quando, esfalfado no serviço do Senhor, eu mal podia ajudá-la a desatacar o colete…»

Cortesia de wikipedia

Sobre a nudez forte da verdade. O manto diáfano da fantasia
«(…) No meu guarda-roupa, nesse duro Inverno, houve apenas um casaco velho, tão renunciado me quis mostrar aos culpados regalos da carne; mas orgulhava-me de ter lá, purificando os cheviotes profanos, a minha opa roxa de irmão do Senhor dos Passos, e o devoto hábito cinzento da Ordem Terceira de São Francisco. Sobre a cómoda ardia uma lamparina perenal, diante da litografia colorida de Nossa Senhora do Patrocínio; eu punha todos os dias rosas dentro de um copo, para lhe perfumar o ar em redor; e a Titi, quando vinha remexer nas minhas gavetas, ficava a olhar a sua padroeira, desvanecida, sem saber se era à Virgem, ou se era a ela, indirectamente, que eu dedicava aquele preito da luz e o louvor dos aromas. Nas paredes dependurei as imagens dos santos mais excelsos, como galeria de antepassados espirituais, de quem tirava o constante exemplo nas difíceis virtudes; mas não houve de resto no céu, santo, por mais obscuro, a quem eu não ofertasse um cheiroso ramalhete de Padre-Nossos em flor. Fui eu que fiz conhecer à Titi São Telésforo, Santa Secundina, o beato António Estroncónio, Santa Restituta, Santa Umbelina, irmã do grão São Bernardo, e a nossa dilecta e suavíssima patrícia Santa Basilisca, que é solenizada juntamente com São Hipácio, nesse festivo dia de Agosto em que embarcam os círios para a Atalaia.
Prodigiosa foi então a minha actividade devota! Ia a matinas, ia a vésperas. Jamais falhei a igreja ou ermida, onde se fizesse a adoração ao Sagrado Coração de Jesus. Em todas as exposições do Santíssimo eu lá estava, de rojos. Partilhava sofregamente de todos os desagravos ao Sacramento. Novenas em que eu rezei, contam-se pelos lumes do céu. E o Setenário das Dores era um dos meus doces cuidados.
Havia dias em que, sem repousar, correndo pelas ruas, esbaforido, eu ia à missa das sete a Santana, e à missa das nove da Igreja de São José, e à missa do meio-dia na ermida da Oliveirinha. Descansava um instante a uma esquina, de ripanço debaixo do braço, chupando à pressa o cigarro; depois voava ao Santíssimo exposto na paroquial de Santa Engrácia, à devoção do terço no convento de Santa Joana, à bênção do Sacramento na capela de Nossa Senhora, às Picoas, à novena das Chagas de Cristo, na sua igreja, com música. Tomava então a tipóia do Pingalho, e ainda visitava, ao acaso, de fugida, os Mártires e São Domingos, a igreja do convento do Desagravo e a Igreja da Visitação das Salésias, a capela de Monserrate, às Amoreiras e a Glória ao Cardal da Graça, as Flamengas e as Albertas, a Pena, o Rato, a Sé! À noite, em casa da Adélia, estava tão derreado, mono e mole ao canto do sofá, que ela atirava-me murros pelos ombros, e gritava, furiosa: esperta, morcão!
Ai de mim! Um dia veio, porém, em que a Adélia, em vez de me chamar morcão, quando, esfalfado no serviço do Senhor, eu mal podia ajudá-la a desatacar o colete, passou, sempre que os meus lábios insaciáveis se colavam demais ao seu colo, a empurrar-me, a chamar-me carraça... Foi isto pelas alegres vésperas de Santo António, ao aparecerem os primeiros manjericões, no quinto mês da minha devoção perfeita. A Adélia começara a andar pensativa e distraída. Tinha às vezes, quando eu lhe falava, uni modo de dizer hem?, com o olhar incerto e disperso, que era um tormento para o meu coração. Depois um dia deixou de me fazer a carícia melhor, que eu mais apetecia, a penetrante e a regaladora beijoca na orelha. Sim, decerto permanecia terna... Ainda dobrava maternalmente o meu paletó; ainda me chamava riquinho; ainda me acompanhava ao patamar em camisa, dando, ao descolar do nosso abraço, esse lento suspiro que era para mim a mais preciosa evidência da sua paixão; mas já me não favorecia com a beijoquinha na orelha». In Eça de Queirós, A Relíquia, 1887, Typographia de A. J. da Silva Teixeira, Porto, 1887, Editora Livros do Brasil, Obras de Eça de Queirós, 2011, ISBN 978-989-711-008-5.

Cortesia de ELBrasil/JDACT