sábado, 29 de fevereiro de 2020

As Crianças de Cárquere. Assim Nasceu Portugal. Domingos Amaral. «A custo, seu pai lá acabara por admitir que, em trinta e tal anos, lançara ao mundo dez crianças. E onde estão agora?»

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As Crianças de Cárquere. 1146
Lamego, Agosto de 1146
«(…) Deitei água fria em tal disparate. Era impossível entrar em Silves sem ser descoberto, muito menos chegar à fala com a princesa. Mem teria de ser paciente até que um dia a garra de Ibn Qasi afrouxasse e Zaida pudesse escapar-se daquela opressão inglória e infeliz. Ela jamais colocará a filha Maryam em risco. Após um longo silêncio, Mem sorriu-me e disse: já sou cavaleiro. Quando a Zaida fugir, caso-me com ela! O recente título enchia-lhe o coração de urna grandiosa expectativa e falava como se um destino inexorável tivesse sido corrigido. Uma princesa que aspirava ao trono de Córdova nunca poderia desposar um almocreve, mas podia fazê-lo com um cavaleiro portucalense. Ele só tinha de aguardar pelo momento certo.
Muita paciência, traz sapiência.
Assim sendo, Mem aceitou a sugestão que Chamoa lhe fez. A minha cunhada desafiara-nos, a mim e à minha Maria, a uma ida a Tui, onde ela iria também passar o Natal, com dona Justa e os seus seis filhos. E, saudosa do seu amigo, mas pensando também em Pêro Pais, que se aborrecia muito no Norte, Chamoa estendeu o convite a Mem e às três irmãs moçárabes. Sente-se sozinha e quer-nos todos por lá, comentou a minha esposa, Maria Gomes. Na verdade, meus queridos filhos e netos, eu sabia que não era apenas a saudade que movia a minha cunhada. Chamoa já fora visitar o pai, Gomes Nunes, que lhe contara novidades sobre a intriga de Compostela...

Tui, Dezembro de 1146
Meu pai envelheceu muito. Está triste, e quase cego. A lamentosa descrição de Chamoa comoveu-me e tive pena do meu sogro, Gomes Nunes, que muito estimava. O imperador Afonso VII punira-o com exagerada dureza, obrigando-o não só à perda do título de conde de Toronho, mas também a um retiro forçado no mosteiro portucalense de Pombeiro, perto de Guimarães. Vigiado em permanência, o pacato Gomes Nunes aceitara o castigo com a habitual submissão. Semanas antes, Chamoa visitara-o. Aquela extremosa filha emocionara-se com a solidão do pai, que sofria de saudades, fosse dos netos, fosse das criaditas e das padeiras de Tui. Os monges são uns chatos, queixara-se Gomes Nunes. Não lhe permitiam visitas nocturnas. Ainda tentara suborná-los, mas, sem sucesso, entediava-se, um queixume que fez Chamoa sorrir.
Tenho a quem sair...
Moía-o também uma humilhação permanente: a sua mulher, Elvira Peres Trava, vivia alegremente no castelo que fora de ambos. Diz-se que tem dois amantes, a marafona!, barafustara Gomes Nunes, mais invejoso do que raivoso. Chamoa confrontara o pai com a inconfidência do monge Leopoldo acerca das idas secretas ao Mosteiro de Cárquere.
Embaraçado, Gomes Nunes emudecera, obrigando Pêro Pais, o seu neto mais estimado, a insistir: haveis tido mais filhos? Corado, Gomes Nunes confirmara as suas responsabilidades na gravidez de várias padeiras e criaditas de Tui. Após o nascimento dos rebentos, presenteava as mães com casas e terrenos para cultivo. De seguida, colocava os bebés numa cesta e levava-os de carroça até Cárquere, onde os depositava à guarda dos monges. Quantos irmãos ou irmãs tenho?, perguntara Chamoa. A custo, seu pai lá acabara por admitir que, em trinta e tal anos, lançara ao mundo dez crianças. E onde estão agora?, -questionara Pêro Pais». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9
                                                 
Cortesia da CasadasLetras/JDACT