quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

Metamorfoses da cidade medieval A coexistência entre a comunidade judaica e a catedral de Viseu Anísio Sousa Saraiva. «Neste entrecruzar de espaços habitados e no bulício dos afazeres dos mesteres e dos trabalhos do campo, executados por cristãos e judeus…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Pelas informações disponíveis percebemos estar perante uma comunidade judia numerosa e activa, dedicada a diferentes actividades económicas que animavam a cidade, como se depreende da variedade de ofícios mecânicos a que muitos dos seus membros se dedicavam, com particular interesse nas actividades de ferreiro, gibiteiro, ourives, sapateiro, tintureiro e tecelão, em consentâneo com a não menos importante ligação ao sector agrícola, principalmente na exploração de vinhas, lagares e alguns olivais, também estes de propriedade da catedral e situados na área peri-urbana da cidade, sobretudo em Jugueiros, mas também na Arroteia, em Ranhados, na Mouta, em Sás, na Alagoa e junto do rio Pavia.
Neste entrecruzar de espaços habitados e no bulício dos afazeres dos mesteres e dos trabalhos do campo, executados por cristãos e judeus, encontramos a génese do pulsar da nova cidade em que se tornou a Viseu de Quatrocentos. Porém, o quadro de coexistência pacífica que terá caracterizado o relacionamento destes dois grupos, assente na tolerância da maioria face à minoria, acabou por ganhar outros contornos ao longo do século XV como consequência do aumento da pressão segregacionista imposta pela política antijudaica da época. Na verdade, se houve momentos em que a comuna de Viseu obteve a protecção e o patrocínio da Coroa, como aquele em que recebeu a confirmação dos seus privilégios, foros, liberdades e costumes, outorgada pelo rei Duarte I, em 1433, outros houve em que foi o alvo das queixas da maioria cristã interessada agora em reforçar a secundarização da minoria judaica no quadro sócio-económico da cidade. A reclamação mais forte foi apresentada nas cortes realizadas em Évora, em 1444. Queria o concelho de Viseu aproveitar o facto de a cidade começar finalmente a ser amuralhada para solicitar ao rei a transferência da judiaria para um lugar mais afastado dentro do perímetro do muro, de forma a evitar o grande inconveniente de ter o bairro judaico em pleno centro urbano. O infante regente Pedro concordou com o pedido, mas só quando a cidade estivesse efectivamente toda murada, o que ainda estava longe de ser uma realidade, razão por que a mudança da judiaria nunca se chegou a efectivar. Anos mais tarde, em 1460, o concelho voltaria a reclamar em cortes, de novo reunidas em Évora, pedindo para que as vendas feitas por cristãos a judeus se realizassem primeiro na Praça da cidade e não na Judiaria, porque, em contrário, alegavam que as mercadorias quando chegavam ao mercado, depois de passarem pela rua dos judeus, já iam çujas e dampnadas. Novos sinais de crispação e antagonismo foram dados oito anos depois, em 1468, desta vez pelos procuradores de Viseu às cortes de Santarém. Queixavam-se agora de haver judeus a habitar fora da Judiaria e do facto das casas deste bairro terem portas e janelas que tanto davam serventia para a própria Judiaria como para as casas de cristãos, resultando daí grande prejuízo e dano à cidade. Por essa razão solicitaram ao monarca que ordenasse aos judeus o encerramento de todas as portas e janelas que confrontassem com propriedade cristã, pedido a que o rei Afonso V prontamente anuiu. O bairro judaico de Viseu ganharia assim a sua definitiva configuração, de espaço reservado, vedado aos olhares da cidade cristã, ao mesmo tempo que não permitia aos judeus a livre vizinhança com os demais elementos da maioria religiosa. À imagem do isolamento das casas judaicas juntava-se a do encerramento da rua da Judiaria, atestado desde 1455, através da colocação de portas em cada uma das suas extremidades, uma delas, aliás, situada na esquina da Rua da Triparia, junto a uma travessa que dava passagem para a Sé». In Anísio Sousa Saraiva, Metamorfoses da cidade medieval. A coexistência entre a comunidade judaica e a catedral de Viseu, Revista Medievalista, nº 11, 2012, Universidade de Coimbra, Centro de História da Sociedade e da Cultura, Centro de Estudos de História Religiosa, IEM, ISSN 1646-740X.

Cortesia da RMedievalista/JDACT