sábado, 22 de fevereiro de 2020

A Relíquia. Eça de Queirós. «Porque agora, eu estava bem decidido a não deixar ir para Jesus, filho de Maria, a aprazível fortuna do Comendador G. Godinho. Pois quê! Não bastavam ao Senhor os seus tesouros incontáveis; as sombrias catedrais de mármore…»

Cortesia de wikipedia

Sobre a nudez forte da verdade. O manto diáfano da fantasia
«(…) Estugando o passo pela Rua Nova-da-Palma, eu sentia agora bem claramente, bem amargamente, o erro da minha vida... Sim, o erro! Porque até aí, essa minha devoção complicada, com que eu procurara agradar à Titi e ao seu ouro, fora sempre regular, mas nunca fora fervente. Que importava murmurar com correcção o terço diante de Nossa Senhora do Rosário? Diante de Nossa Senhora em todas as suas encarnações, e bem em evidência para comover a Titi, eu devia mostrar habilmente uma alma ardendo em labaredas de amor beato, e um corpo pisado, penitente, ferido pelos picos dos cilícios... Até ai a Titi podia dizer com aprovação: é exemplar. Era-me preciso, para herdar, que ela exclamasse um dia, babada, de mãos postas: e santo! Sim! Eu devia identificar-me tanto com as cousas eclesiásticas e submergir-me nelas de tal sorte, que a Titi, pouco a pouco, não pudesse distinguir-me claramente desse conjunto rançoso de cruzes, imagens, ripanços, opas, tochas, bentinhos, palmitos, andores, que era para ela a religião e o céu; e tomasse a minha voz pelo santo ciciar dos latins de missa; e a minha sobrecasaca preta lhe parecesse já salpicada de estrelas, e diáfana como a túnica de bem-aventurança. Então, evidentemente, ela testaria em meu favor, certa que testava em favor de Cristo e da sua doce Madre Igreja!
Porque agora, eu estava bem decidido a não deixar ir para Jesus, filho de Maria, a aprazível fortuna do Comendador G. Godinho. Pois quê! Não bastavam ao Senhor os seus tesouros incontáveis; as sombrias catedrais de mármore, que atulham a terra e a entristecem; as inscrições, os papéis de crédito que a piedade humana constantemente averba em seu nome; as pás de ouro que os Estados, reverentes, lhe depositam aos pés trespassados de pregos; as alfaias, os cálices, e os botões de punho de diamantes que ele usa na camisa, na sua Igreja da Graça? E ainda voltava, do alto do madeiro, os olhos vorazes para um bule de prata, e uns insípidos prédios da Baixa! Pois bem! disputaremos esses mesquinhos, fugitivos haveres, tu, ó filho do carpinteiro, mostrando à Titi a chaga que por ela recebeste, uma tarde, numa cidade bárbara da Ásia, e eu adorando essa chaga, com tanto ruído e tanto fausto, que a Titi não possa saber onde está o mérito, se em ti que morreste por nos amar de mais, se em mim que quero morrer por não te saber amar bastante!... Assim pensava, olhando de través o céu, no silêncio da Rua de São Lázaro. Quando cheguei à casa, senti que a Titi estava no oratório, sozinha, a rezar. Enfiei para o meu quarto, sorrateiramente; descalcei-me; despi a casaca; esguedelhei o cabelo; atirei-me de joelhos para o soalho, e fui assim, de rastos, pelo corredor, gemendo, carpindo, esmurrando o peito, clamando desoladamente por Jesus, meu Senhor... Ao ouvir, no silêncio da casa, estas lúgubres lamentações de arrastada penitência, a Titi veio à porta do oratório, espavorida.
Que é isso, Teodorico, filho, que tens tu?... Abati-me sobre o soalho, aos soluços, desfalecido de paixão divina. Desculpe, Titi... Estava no teatro com o doutor Margaride estivemos ambos a tomar chá, a conversar da Titi... E vai de repente, ao voltar para casa, ali na Rua Nova-da-Palma, começo a pensar que havia de morrer, e na salvação da minha alma, e em tudo o que Nosso Senhor padeceu por nós, e dá-me uma vontade de chorar... Enfim, a Titi faz favor, deixa me aqui um bocadinho só, no oratório, para aliviar... Muda, impressionada, ela acendeu reverentemente, uma a uma, todas as velas do altar. Chegou mais para a borda uma imagem de São José, favorito da sua alma, para que fosse ele o primeiro a receber a ardente rajada de preces que ia escapar-se, em tumulto, do meu coração cheio e ansioso. Deixou-me entrar, de rastos. Depois, em silêncio, desapareceu, cerrando o reposteiro com recato. E eu ali fiquei, sentado na almofada da Titi, coçando os joelhos, suspirando alto, e pensando na viscondessa de Souto Santos ou de Vilar-o-Velho, e nos beijos vorazes que lhe atiraria por aqueles ombros maduros e suculentos, se a pudesse ter só um instante, ali mesmo que fosse, no oratório, aos pés de ouro de Jesus, meu Salvador!
Corrigi então a minha devoção e tornei-a perfeita. Pensando que o bacalhau das sextas-feiras não fosse uma suficiente mortificação, nesses dias, diante da Titi, bebia asceticamente um copo de água e trincava uma côdea de pão; o bacalhau comia-o à noite, de cebolada, com bifes à inglesa, em casa da minha Adélia». In Eça de Queirós, A Relíquia, 1887, Typographia de A. J. da Silva Teixeira, Porto, 1887, Editora Livros do Brasil, Obras de Eça de Queirós, 2011, ISBN 978-989-711-008-5.

Cortesia de ELBrasil/JDACT