domingo, 24 de fevereiro de 2013

A Bela Angevina. Leituras. José Augusto França. «Depois, sairia a olhá-la, na Rue Saint-Aubin, mas sentia que uma divertida curiosidade tomava conta dele. Porque não, Angers?... Havia, porém, que aproveitar bem o tempo, agora que despachara o Primo posto à venda em Fevereiro»

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A Chegada a Angers
«Era um fim de Setembro doce, no clima angevino que ele experimentava pela primeira vez, pelo acaso daquele encontro de Verão de Dinan, onde acabara por se aborrecer. Telegrafou então ao hotel que lhe indicara o simpático Monsieur Grasset. O conde Bankow preferira há muito ir a Paris, mas as suas finanças não lhe permitiam despesas de boulevard, disfarçou ele, com humor, entre homens du monde. Desceu a Nantes para apanhar a linha de Angers e assim desembarcava agora na estação de Saint-Laud, um edifício modesto, com um alpendre e depósitos de maquinaria e ainda um hall para mercadorias que se acumulavam diante da praça triste onde três hotéis se perfilavam, sem grande convicção, o de France, o dos Voyageurs e, inevitavelmente, o de La Gare. Mas ele tinha à sua espera, no cais, desbarretando-se, o chasseur de l'Hotel du Cheval Blanc, que logo tomou conta das duas malas e da chapeleira, levando-as a um fiacre com o cocheiro aguardando, para as subir ao seu assento. Não foi preciso qualquer ordem, e a carruagem partia já, num pequeno trote que lhe pareceu de bom augúrio, depois das fadigas do caminho-de-ferro onde viajara sem companhia no seu compartimento, de veludo ainda novo, de tom esverdeado, capitonné.
A paisagem, pelo caminho, não o animara, e sentia-se, como sempre, alheio às belezas da natureza, mesmo outonal. Trouxera de Inglaterra um livro de um jovem romancista americano, Henry James, que acabara de sair e mal folheara em Dinan, A Little Tuor in France. The American, que lera em Bristol, divertira-o imenso, e achava-se com razões para isso, mas reservara as suas impressões de viagem para livro de distracção, na estada que pensava fazer em Angers. No comboio, porém, procurara as páginas dedicadas à cidade e ficara desconsolado: pertenceria ela a esta desagradável categoria de velhas cidades que foram, como se diz, remendadas?
E via-se a deambular, como James, irritado, por boulevards de segunda categoria procurando, vagamente, em torno, fachadas inexistentes, de outrora. Angers la noire dos telhados de ardósia, vítima de melhoramentos modernos, indigna do seu admirável nome... My God!, - disse ele, e logo: Virgem Santíssima!, em que se metera ele! Então a Atenas do Oeste... É verdade que Coimbra também pretendia sê-lo, mais abaixo... Lembrava-se por alto de Michelet, outrora lido. De Mérimée tinha-lhe falado Monsieur Grasset. O fiacre seguia o seu caminho, passara uma rua nova, sem interesse mas limpa, atravessara uma praça que tinha ar de ter sido aberta recentemente, e atravessara, choutando, um largo boulevard plantado de tílias, deixando-lhe tempo para olhar, ao fundo, à sua esquerda, o célebre castelo do Bon Roi René, mas só de esguelha, com uma estátua pequenina à ponta. A Rue des Lices tinha, de um lado e do outro, uma harmonia calma, na doçura dos seus tons ocre.
Logo à entrada, ele reparou num edifício longo, de dois andares, o segundo, com uma galeria vidrada, de atelier, de fotógrafo famoso, soube mais tarde, mas foi sobretudo a massa imponente da torre de Saint Aubin que o impressionou. Era, sabia ele, um monumento respeitável, restos de uma abadia beneditina, bem românico da região. Mas o fiacre voltou logo à esquerda para entrar sob um largo portão num pátio com grandes vasos de cerâmica onde se abriam palmeiras, com uma alegria fictícia. Ao fundo, outro portal dava para um terreiro onde o cliente pôde ver uma caleche atrelada. Era a parte de serviço, mas ele lamentava não ter tido possibilidade de ver, ao chegar, a fachada da rua do hotel onde ia ficar.
Depois, sairia a olhá-la, na Rue Saint-Aubin, mas sentia que uma divertida curiosidade tomava conta dele. Porque não, Angers?... Havia, porém, que aproveitar bem o tempo, agora que despachara o Primo posto à venda em Fevereiro em Portugal, e com êxito já sabido, e mesmo pelo lado político do Teófilo e do Rodrigues de Freitas, e que uma tradução francesa em projecto parecia fazer-se. E emendava últimas provas do último Crime que sairia ainda esse ano, talvez. Outros planos fervilhavam-lhe no espírito, no isolamento de Newcastle, e o maior deles ia ganhando corpo, inchando, para além de um projecto já do ano anterior. E nisso ia ele empregar o seu tempo angevino, buscando a personagem feminina que precipitasse o drama que já era dos Maias. Como poderia ele sabê-lo, no pátio do hotel, recebido pelo gerente, de sobrecasaca grave, um sorriso de amáveis boas-vindas na boca? Monsieur le Consul a fait un bon voyage? Pas trop fatigué? Croyez, Monsieur le consul, que nous sommes à votre entière disposition...?

In José Augusto França, A Bela Angevina, Editorial Presença, Lisboa, 2005, ISBN 972-23-3359-3.

Cortesia de Presença/JDACT