sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Viagens na Minha Terra. Portugal. Afrânio Peixoto. «Simbolicamente, curvo-me e beijo o chão de Lisboa, como o filho que torna ao lar dos seus maiores beija, em mente, a soleira da casa paterna, dentro da qual o esperam seus parentes, seus amigos, e as memórias dos que se foram, e a criaram…»


jdact e cortesia de albertosousa

Lisboa
«Que hei-de dizer? Descrevê-la? Calar-me? Farei uma oração a Santo António e outra a Camões, os santos padroeiros da terra e, com isso, terei rendido a graça, que justifica o ditado…
  • Quem não viu Lisboa, não viu coisa boa… Mirei e admirei.
História, tradição, realidade… todos acham. A história de Portugal, a tradição grega, moura, afonsina… O Tejo que se abre ao Oceano e por onde saiu e entrou a Glória de Portugal… Recuso-me a ser banal, em Lisboa. Guardo-a para mim. Apenas, filho pródigo da família, reparo que a sala de receber, desse solar de Portugal, tem muito
das coisas que deixei alem-Atlântico. Não é o Brasil, Rio, Baía, S. Paulo… apenas expansão e desenvolvimento, répricas, tréplicas, de Portugal, Lisboa, Porto, Braga…?
Estou em casa, na minha casa. Apenas, se menor aqui e ali, se com outro ambiente, uma natureza diferente, em compensação lá… ainda não há Torre de Belém, os Jerónimos, a Sé, o Museu das Janelas Verdes, a Torre do Tombo, o Museu dos Coches, o Arquivo Colonial, o Museu de São Roque, esses Museus-Paços, que são as casas nobres... Completamo-nos, porém. Na casa paterna há mais tempo; na do filho há mais novidade. Natureza, expansão, possibilidades, talvez. Mas, nem nós poderíamos ser nada sem eles, pois que somos eles no sangue e na memória… nem eles jáá serão possíveis sem nós, o filho grande e amado, que criaram, com o sangue, com a memória…
Simbolicamente, curvo-me e beijo o chão de Lisboa, como o filho que torna ao lar dos seus maiores beija, em mente, a soleira da casa paterna, dentro da qual o esperam seus parentes, seus amigos, e as memórias dos que se foram, e a criaram, e criaram o orgulho que tem de ser português, pois que brasileiro é apenas um lusitano da América, voz nova na velha língua portuguesa… Evitemos, porém, a ênfase, que é inadmissível, em boa sociedade. Lembremo-nos, para disfarçar a emoção, de um livro faceto, do nosso comum e grande Eça de Queiroz. Na A Cidade e as Serras, o digno preto, criado de Jacinto, comenta o filho nascido à menina da Flor da malva; - Sua excelência brotou
Dom Portugal também brotou, na América. O broto é o Brasil. Mas o tronco é o mesmo.

Odivelas. Mafra. Sintra. O Fado
Odivelas
Não foi malsã curiosidade, a de visitar o famigerado convento de Odivelas, a duas léguas do centro de Lisboa, continuando o bairro do Lumiar, na estrada do norte, por entre quintas garridas. Ali foi o rei Dinis I, que o levantou, em 1295, e onde meteu freira uma filha bastarda, ali foi a enterrar-se. Ali esteve, com ele, a Rainha Santa Isabel, que se iria a enterrar em Santa Clara… (Rei e Rainha combinaram em juntar-se, finalmente! Para sempre, no Mosteiro de Alcobaça… Depois, o Rei esqueceu, e dispôs, sozinho, a própria sepultura em Odivelas. A Rainha doeu-se do abandono, e determinou, enciumada, ir repousar também só, na igreja da Penha, do Castelo de Leiria, onde fez cavar túmulo. Mas mulher, embora santa, quando elas não têm a quem contrariar, contrariam-se a si mesmas… contrariou-se, enterrando-se em Coimbra…). Ali, em Odivelas, morreu Dona Felipa de Lencastre, a mulher do rei João I, a mãe dos ínclitos Infantes, que daí mandou os filhos a Ceuta, antes de finar-se, ao começar a aventura peregrina de Portugal… Santa Joana, antes de Aveiro, aí experimentou a clausura, São sagradas memórias, para sã curiosidade…




Mas a má fama se lhe ajuntou também. O rei Dinis não era casto, nem cauto, pois que sujeito a murmurações. Se não tinha amores em convento, fez recolhimento para a bastardia. O Povo havia de satirizar o nome de Odivelas, por obra de outros soberanos:
  • Onde ir vê-las... Vê-las, às Freirinhas de Odivelas.
Afonso VI houve aí amantes, das quais duas tiveram fama, Feliciana de Milão, dotada de má língua e outros dotes, e Ana de Moura, a quem prometeu fazer rainha e por quem se metia a tourear, no pátio do mosteiro. Mas foi João V quem, a tudo, e a todos, excedeu. É exacto que ao tempo não era a Europa, nem os grandes, nem os religiosos, por todo o mundo, muito diferentes… Como haveria de sê-lo Odivelas, junto de Lisboa, num canto discreto, no século XVIII, com João V? Lugar ímpio e escandaloso.
Hoje, tudo passou. Veio o terremoto de 1755 e o melhor foi-se, desabado, subvertido. Sic transit. Tudo é ruína, pobreza, vestígio do passado, no couto pobre e no arruinado mosteiro real de Odivelas. O que resta, do sumptuoso convento para 300 freiras e quantos serviçais? É apenas representado por acanhado recolhimento de meninas, pupilas de um educandário, cuja inocência purifica aqueles lugares… Passaram as freiras e suas ocupações, alcunhas de malícia, intrigas galantes, doces delicados. Desses, tenho saudades… Tinham gosto, perfume e nomes alegóricos:
  • suspiros,
  • raivas,
  • esquecidos,
  • tabefes,
  • palha de abade,
  • barriga de freira,
  • toucinho do céu,
  • fartens,
  • doces de abóbora, de cidra, de marmelo, torrões rosados de açúcar… (no couto, ainda adquiri a saborosa marmelada de Odivelas…).
Com essa confeitaria, atraíam as freiras, a poetas e folgazões, aos oiteiros, academias de letras, na cerca dos conventos… Tudo passou. Até doces e oiteiros». In Afrânio Peixoto, Viagens na Minha Terra, Portugal, desenhos de Alberto de Sousa, Livraria Lello & Irmão Editores, Porto, 1938.


Cortesia de L. Lello/JDACT