quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Os Pilares da Diferença. Relações Portugal-África séculos XV-XX. Isabel Castro Henriques. «Tornar passivas as presenças angolanas nos documentos portugueses tem como corolário o desinteresse pela existência e pela articulação histórica das “nações” angolanas, a recusa em aceitar os seus territórios, as suas fronteiras, os seus espaços de controle e de influência»

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Presenças. Fronteiras e espaços angolanos
«Estas presenças angolanas descritas nas fontes em língua portuguesa foram reduzidas a uma existência lisa, sem intervenção no processo histórico angolano, situação resultante dos conceitos e preconceitos que caracterizam o longo percurso intelectual português para silenciar a voz do Outro , negar-lhe qualquer autonomia histórica e transformá-lo em simples resíduo da sua própria História. A operação histórica agora fundamental assenta não na recusa desses documentos, mas na sua re-leitura e re-classificação, para os transformar em fontes indispensáveis à elaboração da História de Angola. Trata-se de despir os documentos das suas roupagens lusocêntricas e preconceituosas, resultantes de leituras marcadas pelas ideologias e pelos sistemas culturais portugueses e de pôr em evidência as presenças criativas e dinâmicas angolanas. Por outras palavras, devolver aos angolanos o papel de actores centrais do seu processo histórico, de agentes e fazedores da História de Angola.
Tornar passivas as presenças angolanas nos documentos portugueses tem como corolário o desinteresse pela existência e pela articulação histórica das nações angolanas, a recusa em aceitar os seus territórios, as suas fronteiras, os seus espaços de controle e de influência. O que quer dizer que esta rejeição da história das nações que, no final do século XIX, viriam a integrar o espaço da Angola de hoje, não é mais do que a maneira de decidir a coisificação dos homens africanos, que a longa duração da escravatura e do tráfico negreiro tornava evidente, fornecendo aos europeus as provas consideradas indiscutíveis para impor essa classificação dos homens e das mulheres africanos.
A fronte ira não pode deixar de ser considerada como uma espécie de metonímia dos espaços e dos territórios. Os homens estabelecem relações particulares com os ecosistemas e estas devem permitir a definição dos sistemas políticos. Os homens criam e ocupam o espaço, tal como não podem deixar de inventar o território que os une, fornecendo-lhes um suporte físico que, contendo-os, os explica, graças ao trabalho, assim como ao conhecimento que permite classificar e por isso gerir. A fronteira é inseparável do espaço, tal como está directamente ligada ao território.
Quer dizer que a fronteira define o espaço ou o território onde os homens se integram, pelo que a sua criação, reforçada pelo seu reconhecimento, implicam não só contabiliar a História, mas estudar as condições que lhe dão origem e permitem o funcionamento. Recusar espaços e fronteiras africanos é recusar o sistema de relações que os homens vão inventando ao longo da sua própria sedimentação histórica. As fronteiras existentes em África são reveladoras de, pelo menos, dois sedimentos históricos.
  • O primeiro foi criado pelas próprias escolhas e invenções políticas africanas;
  • O segundo, que procurou quase sempre desconhecer o primeiro, depende essencialmente da presença estrangeira, isto é, das decisões europeias e mais ainda das operações levadas a cabo pelos europeus após a Conferência de Berlim (1884-1885).
Raramente, as fronteiras modernas respeitaram ou as fronteiras anteriores ou os interesses específicos das populações ou das estruturas políticas africanas. Todavia, a situação é frequentemente ambígua, pois que as potências coloniais procuraram utilizar em seu proveito seja as instituições políticas africanas, seja as fronteiras que definiam as nações africanas, os seus conflitos e as suas complementaridades». In Isabel Castro Henriques, Os Pilares da Diferença, Relações Portugal-África séculos XV-XX, Caleidoscópio, Ciências Sociais e Humanas, Estudos de História, 2004, Centro de História da U. de Lisboa, ISBN 972-8801-31-9.

Cortesia de Caleidoscópio/JDACT