quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

José e os Outros. Almada e Pessoa. Romance dos Anos 20. José Augusto França. «É mesmo às dez horas, lá isso!... O gerente virou as costas e foi-se embora, dizendo duas palavras ao João Franco que encolheu os ombros, com a sua filosofia. Você conhece-os melhor do que eu…»


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A Inauguração
«O Teles dera ordem para fechar o café só às dez horas da noite e o senhor Batista era fielmente intratável, baixo e reforçado, de grandes bigodes retorcidos. Vamos ficar aqui a noite toda, e não é certo!... Ah, amanhã às sete tem que estar tudo em ordem, para a limpeza! Era mesmo uma ameaça, e Pacheco não podia admiti-lo: O senhor Batista não sabe quem eu sou… O Batista não sabia nem queria saber: eram ordens e o senhor Teles não era para brincadeiras. Para ele, Batista, aquilo dos quadros era então isso, uma brincadeira? O sentido das suas palavras não era esse, a questão era só idiomática, mas Pacheco espumava, lívido: Eu não estou para isto! Sentou-se a uma mesa e o João Franco tentou acalmá-lo: Não beba mais café, senhor Pacheco. Ele ia telefonar para o escritório, ao senhor Teles. Lá isso pode telefonar, mas olhe que é pior... O homem do café a pataco!... Berrou Pacheco, com a sua voz esganiçada, mas engasgou-se e desatou a tossir, de dentro do peito. A sua magreza, o nariz agudo, a sair das faces cavadas, de barba rapada, e dos olhos encovados, ainda fazia mais impressão, vista nos espelhos. Eu tenho estado tão doente… Disse ele, num queixume, apoiando os cotovelos na mesa. Os espelhos, os espelhos, que não conseguira evitar…
É mesmo às dez horas, lá isso!... O gerente virou as costas e foi-se embora, dizendo duas palavras ao João Franco que encolheu os ombros, com a sua filosofia. Você conhece-os melhor do que eu… O plural era para eles todos, os seis ou sete pintores aqueles quadros. Ainda o das lavadeiras... Estavam guardados na Sociedade, na Barata Salgueiro, e o Batista fora vê-los só para ter uma ideia do trabalho de os pendurar. Escadotes, eram precisos três, e ao lado do relógio, como era? E, todo o cuidado com os espelhos era pouco: um dinheirão...
O arquitecto tinha vindo vê-los, a pedido do Teles, e é claro que não achou bem: ele tinha sido sempre contra aquela ideia dos quadros, pusera lá os espelhos para alargar o espaço estreito da Loja, e chegava. Quem é que ia ver os quadros, lá em cima? Perguntara-lhe o cliente. Norte Júnior abanou a cabeça, com delicadeza, deixando correr os seus óculos de aro fino de metal e o seu cuidado bigode, de caracol. O Pacheco tinha trabalhado no seu atelier, era muito hábil mas não tinha juízo; dizia-se arquitecto, enfim... E com k! Mas a ideia, para, ele, era o Alberto de Sousa, de que os jornais tinham falado, a princípio.
E o Soares e o Barradas, que tinham talento, mas aquele Almada, não podia com ele. Ainda tentara demover o Pacheco: Vê lá em que te metes… Enfim, tinha havido um movimento favorável, e depois da questão das Belas Artes, era melhor não os ter contra. E os jornalistas, o Araújo, o Falcão, mesmo o Matos Sequeira concordava. Olha não... E ria-se discretamente, homem de boa educação e de Sintra.
José chegara pelas três horas, com o Dr. Nazaré, distante e irónico. Está Você a ver? Olhou em volta, rapidamente: queria os seus dois quadros lado a lado, como tinham estado no Salão. Pacheco voltara, mais animado, e estava de acordo: havia quatro pares, era pôr dois de cada lado, e ele próprio e o Stuart faziam a separação, frente a frente. Que o do Stuart era muito mau: aquele moinho... O Stuart nunca tinha visto um moinho na vida! Mas o José queria os Soares defronte, e ele à direita, logo à entrada. Era a sua escolha. Pois, concordava Pacheco, mas o outro era capaz de não querer... José riu-se, escarninho: era melhor que fosse para a Garrett… O Barradinhas apareceu sorridente, pelo meio-dia: ele estava sempre de acordo... Tu, também... Irritavam-se os amigos. O Viana tinha ido para Paris, outra vez: podiam arrumá-lo onde quisessem, consolava-se o Pacheco.
Mas só à noite é que podiam trabalhar, nada a fazer com o Teles e o Batista. Ele tinha apalavrado uma camioneta para trazer os quadros, à tarde, e tinha que descomandar, e os galegos da ilha também. O melhor, o menos bronco, era o Domingos, na verdade Domingo, ele é que escolhera os outros dois. Eu prego, eu prego... Dizia ele, mas José era mais ágil para subir os escadotes. São leves, de tela, dizia o Pacheco. As telas do Teles... Riu-se o Barradas. João Franco rondava: Ó senhor Pacheco, olhe que o Domingo… Ele lá sabia: àquela hora da noite eles já estavam bebidos, e não faziam coisa com coisa. E então se o senhor Stuart se mete... Esta só a mim!... Queixava-se Pacheco, enquanto José dava grandes passadas na coxia: o café, àquela hora, estava quase deserto, com gente que passava e não ficava: os outros chegavam mais tarde». In José Augusto França, José e os Outros, Almada e Pessoa, Romance dos Anos 20, Editorial Presença, Lisboa, 2006, ISBN 972-23-3546-4.

Cortesia de E. Presença/JDACT