terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

O Mosteiro da Infanta. Legendas de Lisboa. Norberto Araújo. «A pedra brasonada do antigo mosteiro da Encarnação, invenção póstuma da sua piedade, está mesmo cortada em lisonja, como lhe competia, princesa sempre noiva, eleita de delfins, de duques, de filhos de imperadores»

Cortesia de martinsbarata e jdact

«Viveu a senhora infanta entre artistas e teólogos. Devota como seu irmão João III, não esqueceu nunca a filha do rei Manuel I, o Venturoso, os hábitos da corte do Paço da Ribeira, onde nascera em 1521. Era riquíssima. A sua vida de sempre menina decorreu, deslizou entre mesuras paçãs e perfumes de incenso.
A pedra brasonada do antigo mosteiro da Encarnação, invenção póstuma da sua piedade, está mesmo cortada em lisonja, como lhe competia, princesa sempre noiva, eleita de delfins, de duques, de filhos de imperadores. Diz-se que foi amada por Camões, e que talvez lhe tivesse dado asas para o Poeta voar a tão alto pensamento.
Era uma linda senhora, de nariz um tudo nada imperfeito, o que lhe imprimia um ar de malícia excelsa, e lhe aumentava o picante da expressão, misto de sensualidade e idealismo, como no desenho de Chantilly, cópia de Gregório Lopes.
No seu testamento instituiu um convento para religiosas beneditinas, que veio a ser o da Encarnação, da Ordem de S. Bento de Avis, só erguido quarenta anos depois da sua morte. É um casario soturno, quase misterioso, debruçado sobre o Rossio. Na sobreporta da igreja ostenta-se o brasão daquele infantado virginal. Por todo o edifício, pelos claustros e terraços, esconsos e escadarias, pejadas de oratórios, de altares, de mistérios místicos, passa ainda, apesar de no mosteiro nunca ter vivido, o talhe esbelto da Senhora Infanta, vestida com o hábito branco de S. Bento, ornado da cruz verde de Avis, tal qual cai ainda hoje dos reposteiros moles.
No exterior, em pleno largo do Convento, uma casinha setecentista de um pitoresco inverosímil, milagre de arquitectura ingénua e popular, reúne-se à ostentação artística da igreja, repousada nos seus azulejos, pinturas de bom pincel e lavores de prata.
Contíguo fica o palácio que foi dos condes de Almada, e, ao alto, Santana, com a rua íngreme onde viveu Camões, e o Campo eriçado de histórias de costumes lisboetas. A Encarnação é, assim, um dos recantos de Lisboa, de penetrante estilete religioso e suave aroma palaciano». In Norberto Araújo, Legendas de Lisboa, edições SPN, Lisboa, 1943.

Cortesia de SPN/JDACT