sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

A Profecia. Histórias Secretas de Reis Portugueses. Alexandre Borges. « Nascida com a ambição de ser a encarnação da Jerusalém celeste, forneceu a grande formação intelectual de alguns dos homens mais influentes do seu tempo. O conde Henrique estava bem ciente da influência dos cluniacenses, ou não fosse ele próprio sobrinho de um…»

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A Profecia. D. Teresa e o rei Afonso Henriques
«Ah, sim. Diziam que era um gigante de quase dois metros de altura. Que o próprio Jesus Cristo lhe apareceu um dia, posto na cruz e rodeado por uma corte de anjos, garantindo-lhe a vitória. Que a espada com que venceu quase todos os exércitos que enfrentou pesava cinco quilos. Ou 15, consoante os livros. E que eram precisos três homens para lha tirar. Lamentavelmente, 400 anos depois, convencido dos poderes sobrenaturais da relíquia do antepassado, o rei Sebastião tê-la-á pedido e perdido num desastroso dia de Agosto em Alcácer Quibir, de modo que nunca saberemos de que era feita. Dizem também que, ainda adolescente, se armou a ele mesmo cavaleiro. Sozinho, com o metal das armas a ecoar, ouvimos ainda, pela Catedral de Zamora, e que enfrentou a mãe. E todos esses múltiplos requintes lendários culminam num episódio: o confronto entre um filho e a mulher que o pôs no mundo. Ter-lhe-ia batido. Tê-la-ia prendido e posto a ferros. Um caso de violência doméstica que perdoamos piedosamente, tendo em vista os fins e a má personalidade que, por instinto, atribuímos à progenitora. É um mundo de homens, de névoas e fantasmas medievais. Temos dificuldade em ver claramente por entre eles. Mas reconhecemos nele o caos inicial donde nasceu o nosso mundo.
Tudo isto se conta sobre Afonso Henriques. E acerca de tudo isto não se sabe onde traçar a fronteira entre a verdade dos factos e a verdade da memória colectiva de um povo precisado de heróis, como todos os outros. E essa é a beleza da História. Das múltiplas histórias de um cavaleiro que fundou um dos mais antigos estados-nação do mundo. Um rei violento e autoproclamado, que, pelo caminho, maltratou a mãe, ou um guerreiro iluminado por Deus, que, por pouco, não foi considerado santo?
As dúvidas começam logo no nascimento. Que pode ter sido em Guimarães ou em Coimbra ou em Viseu. Não se sabe bem em que mês. Provavelmente em 1109. Mas também há quem diga que foi baptizado por Geraldo de Moissac, segundo arcebispo de Braga, depois da recuperação da arquidiocese, e futuro São Geraldo. Mas esse morreu em Dezembro de 1108, depois de expressar um último desejo: comer fruta. O pormenor é importante porque, ao que se diz, quando os companheiros abriram a porta do quarto paru lhe mostrar que ,lá fora, em pleno Inverno, nada haveria a não ser neve e algumas castanhas eventuais espalhadas pelo chão, terão contemplado um cerco de árvores carregadas dos mais variados tipos de frutos. De modo que é preciso escolher:
  • ou Afonso nasceu em 1108 e perdeu o pai aos quatro anos, ou em 1109 e perdeu o pai aos três. Duma forma ou doutra, mal teria idade para se recordar dele, mas seria sempre mais próximo do espectro desse pai morto do que da mãe de carne e osso, ali viva ao lado dele.
Henrique de Borgonha era um nobre que tinha participado na Reconquista Cristã. Combatendo ao serviço de Afonso VI, recuperou terras aos muçulmanos e, pelos feitos bélicos, o rei de Leão e Castela ofereceu-lhe duas coisas: a mão da filha bastarda D. Teresa e o Condado Portucalense. Ao agora conde Henrique cabia governar o território, continuando a prestar vassalagem a Afonso VI. Mas a verdade é que, entre castelos e catedrais, pareciam correr outros anseios. Poder temporal e poder espiritual não andavam longe naqueles dias. A religião desempenhou um papel na formação da identidade dos povos, sobretudo quando se estava na ressaca de trezentos anos de ocupação árabe. A organização territorial desenhava-se sobre a rede cristã de paróquias e dioceses e, a pouco e pouco, uma fronteira impunha-se a traço cada vez mais grosso: a que separava o Minho da Galiza, isto é, a zona de influência da Sé de Braga e a de Toledo. Em 1102, a coberto da noite, o bispo de Compostela, Diogo Gelmirez, percorre igrejas e capelas minhotas e rouba os corpos dos santos locais. A razão oficial era a necessidade de os proteger de saques e profanações; a verdadeira acabar com a concorrência que os santos de Braga faziam às relíquias de Santiago. A batalha pelas romarias de peregrinos ficou definitivamente desequilibrada a favor da Galiza, mas a guerra ainda ia a meio.
A Abadia de Cluny era, por essa altura, o espírito que emanava de França com o projecto de reformar a Igreja. Nascida com a ambição de ser a encarnação da Jerusalém celeste, forneceu a grande formação intelectual de alguns dos homens mais influentes do seu tempo:
  • casos de Bernardo, bispo de Toledo,
  • Geraldo, de Braga,
  • ou o próprio papa Pascoal II.
O conde Henrique estava bem ciente da influência dos cluniacenses, ou não fosse ele próprio sobrinho de um, o abade e futuro São Hugo. A cidade de Braga, que D. Teresa recebera do pai como dote de casamento, foi doada pelos condes aos arcebispos, em sinal de uma amizade duradoura e frutuosa, ainda hoje, os corpos de Henrique e Teresa repousam numa capela respeitosamente chamada dos reis, na Sé de Braga. Depois de duas viagens a Roma, o arcebispo conseguiria junto do papa a vitória tão procurada pela Igreja como pelos condes portucalenses: a recuperação da primazia de Braga, com a permissão do leitor, servimo-nos de outro ainda hoje: ainda hoje, o arcebispo de Braga usa o título Primaz das Espanhas. A ressurreição da importância da cidade no contexto da cristandade europeia implicava uma consequência política: a autonomia face a Toledo, a autoridade de convocar os concílios regionais, jurisdição própria sobre os seus domínios». In Alexandre Borges, Histórias Secretas de Reis Portugueses, Casa das Letras, Lisboa, 2012, ISBN 978-972-46-2131-9.

Cortesia C. das Letras/JDACT