sábado, 16 de fevereiro de 2013

Os Venturosos. Leituras. Alexandre Honrado. «’Maria’ seria obrigada a concordar com ele e a dar-lhe mais do que razão, força e ânimo e lei para trazer e estabelecer o Sacro Tribunal a terras deste El-Rei. Então, que fortuna! Para seu agrado, não desdenharia aceitar posição grande em esse Santo…»

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«[…] Foi este estranho sonho, grande pesadelo, que agitou El-Rei naquela noute, sonho mau que o acordou esbaforido e a temer a dimensão da sua sorte...
O Cardeal andava de cá para lá, inquieto, pensando em muitos prós e alguns contras. Se El-Rei voltasse a casar, agora com a tal princesa Maria, ele teria de ir por ela e convencê-la. O Santo Oficio (maldito) era a única coisa de que carecia este reino perdido, onde judeus mesmo baptizados de força e jeito continuavam a ser malquistos, onde mouros mourejavam a seu contento, impunes, onde bruxas magas não faltavam, onde os próprios frades se comportavam como diachos, e metiam-se com mulheres e ficavam com bens alheios e tinham todos os vícios proibidos.
Sim, e já que bispos e o maior dos arcebispos nada faziam a contento, seria ele, o Cardeal, de muito poucos o mais atilado, a muito intrigar para muito conseguir... E Maria, de fama santa, devota, quase pia e tão pia que nem parecia bicho fêmea mas decerto uma não mulher mas santa católica. Maria seria obrigada a concordar com ele e a dar-lhe mais do que razão, força e ânimo e lei para trazer e estabelecer o Sacro Tribunal a terras deste El-Rei. Então, que fortuna! Para seu agrado, não desdenharia aceitar posição grande em esse Santo Oficio (maldito), copiaria os passos, os actos, as mãos que não tremem nunca no juízo, copiaria a santidade desse bom outro inquisidor, o consagrado Torquemada. Seriam dois inesquecíveis... O Cardeal acendia vela após vela, acumulava preces e rezas longas.
 - Que case El-Rei com a Maria e que a Maria me escute e interceda, e que venha por mim o tal de Santo Oficio (maldito) varrer a podridão infiel que me rodeia, e que seja eu, meu Deus, a cumprir humildemente a tarefa confiada de arrebentar o coiro a tanta infidelidade. Assim seja, por vontade Tua!

O genovês, navegando pelo mar incerto, recordou aos companheiros de jornada que, antes de estar ao serviço dos grandes Reis Católicos, propusera os seus serviços a um outro Rei, então seu genro, esclareceu:
  •  - Il Ré é anche Signore di qualche terre in Africa, cioe nella Mauritania tingitana nell’Etiopia, nella Persia, é nell'Indie orientali, et occidentali, peró da quello in fuori della Mauritania, tutto il resto sono cose conquistate di nuouo, com le nauigationi moderne, tutto incerto, tutto poco sicuro, tutto alla riua del mare, senza penetrar punto nella terra dentro, perche la gente di queipaesi sai debole, nuda, et imbelle, non hanno però ancor saputo fersene fermi Signore. Onde essendo un imperio facile da perdersi, com regione il Re non si intitula quanto a quele parti Signor d’altro, che del comercio e della nauigation che há com quele genti. 
  •  - o rei é também senhor de algumas terras em África, na Mauritânia, na Etiópia, na Pérsia e nas Indas Orientais e Ocidentais mas, além da Mauritânia, tudo o resto são coisas conquistadas de novo, com as navegações modernas, tudo incerto, tudo pouco seguro, tudo terra adentro, porque embora a gente daqueles países seja fraca, nua e imbele, não souberam ainda fazer-se firmes senhores delas. Assim, sendo um império fácil de perder-se, com razão o monarca se não intitula quanto àquelas partes senhor de outra coisa a não ser do comércio e da navegação que tem com aqueles povos.
Pobre El-Rei se o escutasse. Pobre… É que pobres são aqueles a quem a pequenez é um engano de sombra enorme que só deixa ver grandeza que nem têm… Surpreendido por El-Rei fazer distinção entre mouros e judeus, poupando aos primeiros com medo de represálias de nações da moirama, e nesses mouros até os mulahs, que são os principais, pois dirigem rezas em mesquitas próprias, e vê-se por ai bem tratado muitos ulemás, esses doutores da Lei muçulmana, juristas e teólogos importantes de Alá, e castigando aos últimos para agrado a seus sogros de antes e depois, Damião escreveu:
  • Hora é que se poderá reputar a descuido não dizermos que causa houve para El-Rei mandar tomar os filhos dos judeus, e não os dos mouros, pois assim uns como os outros se saíam do reino por não quererem receber a água do baptismo, e crer o que crê a Igreja Católica cristã. A causa foi porque de tomarem os filhos aos judeus se não podia recrescer nenhum dano aos cristãos que andam espalhados pelo mundo, no qual os judeus por seus pecados não têm reinos, nem senhorios, cidades nem vilas, mas antes em toda a parte onde vivem são peregrinos e tributários, sem terem poder, nem autoridades para executar suas vontades contra as injúrias e males que lhes fazem... Mas aos mouros por nossos pecados e castigos, permite Deus terem ocupada a maior parte da Ásia e África, e boa parte da cristandade, onde têm impérios, reinos e grandes senhorios, nos quais vivem muitos cristãos debaixo de seus tributos, além dos muitos que têm cativos, e a todos estes fora mui prejudicial tomarem-se os filhos dos mouros, porque àqueles a quem este agravo se fizera, é claro que se não houveram de esquecer de pedir vingança dos cristãos que habitavam nas terras dos outros mouros, depois que se lá acharam… E esta foi a causa por que os deixaram sair do reino com seus filhos, e aos judeus não.
In Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000, ISBN 972-42-2392-2.

continua
Cortesia de C. de Leitores/JDACT