sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

A Teologia de Leonardo Coimbra. Pinharanda Gomes. «Deu força aos sem-terra, aos da cidade, aos proletários, aos cosmopolitas, aos burocratas, ao aparelho que, sem filosofia substante, recolhe, ‘através do tributo compulsivo’, “as taxas”, segundo as quais protege o que vai gastando»

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(continuação)

O Tempo e o Movimento
«O Portugal de 1870 está longe de ser um país com os vícios da revolução industrial. Através de Sebastião José soubéramos, como já o soubéramos através dos mercadores judeus, e dos emigrantes cristãos dos descobrimentos, o que fora o mercantilismo, mas acerca da revolução industrial nunca soubéramos algo de peso. País pequeno, cabisbaixo para as sementeiras que florescem da terra, as grandezas que possuía, e onde com tempo se podia chegar de barco, não tinha aí indústria a fazer. A colonização dessas grandezas não servia para extrair do ventre da terra, mas apenas para complementar, com espaço agrícola e mercantil, a estreiteza das veigas e das locandas peninsulares. Quando se diz que Portugal é um país pobre devia explicar-se:
  • é pobre, porque não é industrial, por isso, nunca será rico, mas também nunca correrá o risco de ser pobre, porque já é pobre.
Nos compêndios de geografia diz-se:
  • Este país é rico, porque tem petróleo, ou carvão, ou ferro. Um dia, depois do ciclo extractivo, se dirá. - Este país era rico, porque tinha petróleo, ou carvão, ou ferro.
A indústria não é uma riqueza; é a maneira de gastar a riqueza. Riqueza só é a economia criadora, que gera bens necessários. A indústria não é uma economia criadora, mas transformadora. Gasta o que há, transformando-o em supérfluos. O homem não passa sem o bem nascido da terra; mas pode viver sem os bens provenientes da indústria. Assim, precisa de proteínas, mas passa bem sem conservas. A regra particular aplica-se a tudo o mais. O homem precisa de se deslocar, mas passa muito bem sem automóvel. Quando dizemos homem sabemos o que dizemos, e nele não incluímos o ser urbano, que, esse, julga que precisa de carro a gasolina, sem saber a razão de ser homem.
Quem consultar uma gravura, mostrando o Rossio de 1870, verá uma cena de aldeia, umas lavadeiras, para os lados do Rossio, e uns carros de bois, cá mais para o Jardim Público. Ao cimo do qual se iniciavam as hortas da Pedreira, continuadas pelas do Campo Grande, Campolide e Lumiar, Carriche abaixo, até por toda a parte, de norte a sul. Também por isso, mau grado os esforços dos senhores economistas da Academia, que, nos saraus culturais, se batiam uns contra os outros, mercantilistas, industrialistas e fisiocratas, o país não precisava, de uma teoria fisiocrática. Ela estava em vigor, tanto nos Saloios como no Marão.
Houve, porém, gente despaisada, desenraizada, sem noção de horta nem de quintal, sem visão de herdade nem de curral, e que de fábricas sabia zero, que se pôs a congeminar, do dado de cima do Rossio, para os lados do Carmo, um país português como se na revolução industrial estivesse inserido, e já sofresse os efeitos do capitalismo opressor, do sindicalismo destruidor e do proletarismo invejoso. Um acto de surrealismo metia o país real no saco, e projectava um país ideal de chaminés poluentes, de moles proletárias marchando, engolidas pelos complexos fabris, das demonstrações do folclore sindical, da ilusão do proteccionismo de seita, elaborado em estrutura de partido.
Era o complexo da civilização cosmopolita, o desejo da cidade, o abandono da terra e, sendo possível, a sua destruição. Mil vezes preferível andar de camisa limpa e de barriga vazia na cidade, do que viver sujo, embora de barriga cheia, na aldeia. O ano de 1870 serviu muito bem os interesses urbanos. Deu força aos sem-terra, aos da cidade, aos proletários, aos cosmopolitas, aos burocratas, ao aparelho que, sem filosofia substante, recolhe, através do tributo compulsivo, as taxas, segundo as quais protege o que vai gastando». In Pinharanda Gomes, A Teologia de Leonardo Coimbra, Guimarães Editores, Colecção Filosofia e Ensaios, Lisboa, 1985.

Pintura de Eduardo Malta

Cortesia de Guimarães Edt./JDACT