sábado, 16 de fevereiro de 2013

A Revolução de 1383. Tentativa de caracterização. António Borges Coelho. «Viviam ainda no concelho os homens dos ofícios, a maioria deles pequenos produtores independentes. Outros, já donos de ofícios, assoldadavam os oficiais e exploravam o trabalho dos aprendizes a bem fazer»

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Divergência e Diálogo
« A organização social nos coutos, honras e nos julgados do século XIV era no geral idêntica à que se processava nas principais cidades e vilas? Nos primeiros dominava uma economia de auto-subsistência e uma exploração de tipo familiar. O senhor era o dono da terra e em boa parte dos seus colonos, sem foros nem liberdades e, sobretudo, sem a organização concelhia para as defenderem. O senhor actualizava permanentemente a renda da terra e sugava o produto do trabalho suplementar e até do trabalho necessário. Nos concelhos a produção voltava-se progressivamente para o mercado. Os homens-bons/cavaleiros vilãos (mercadores e proprietários rurais) reuniam na sua mão terra não jugadeira, terra no essencial livre, que faziam agricultar com os seus caseiros, lavradores, abegões, mancebos, companhas de braceiros e onde os pastores apascentavam os seus rebanhos. Pelas suas mãos escorria o pão, o vinho, o azeite, etc., que entrava no mercado interno e internacional através de uma rede de mercadores, nacional e europeia, particularmente de italianos.
Há mais de um século que estes homens-bons dirigiam a vida do concelho em luta constante pela autonomia, pelos foros e liberdades contra o castelo e os representantes do poder senhorial: o próprio rei, o alcaide, os meirinhos, os mordomos. Viviam no concelho outros grupos sociais: os vizinhos-peões, apertados em duas frentes: a dos homens- -bons que muitas vezes os expropriavam pela força e os compeliam, até certos bens, a trabalhar por soldada ou a ceder os filhos a trabalhar por soldada; e a do rei e dos senhores feudais que, através da jugada e de outras alcavalas, procuravam sugar todo o trabalho suplementar. Viviam ainda no concelho os homens dos ofícios, a maioria deles pequenos produtores independentes. Outros, já donos de ofícios, assoldadavam os oficiais e exploravam o trabalho dos aprendizes a bem fazer.
Havia finalmente os expropriados, os que não tinham nada de seu a não ser a força dos seus braços. Jurídica e politicamente eram todos não privilegiados e esta situação aglutinava de facto a massa heterogénea do concelho. Social e politicamente, com as suas magistraturas eleitas e responsáveis pela direcção efectiva da vida social, o concelho constituía um escudo que defendia os dependentes das arremetidas dos senhores feudais e permitia a acumulação progressiva da riqueza.
Não esqueçamos que, do ponto de vista ideológico, os pequenos proprietários já sonhavam ser grandes enquanto parte dos assoldadados viviam na casa, comiam à mesa do patrão. Este o mundo novo, estas as novas estruturas que vencem o assalto que a nobreza desencadeia no reinado de Fernando I e que avançam decisivamente após 1383 intervindo activamente já no próprio aparelho de Estado. Não se trata de esmagar as estruturas feudais mas de romper o cerco que tenta abafar o mundo novo. Há outros parâmetros de existência colectiva bem diferentes e bem mais avançados do que a existência colectiva nos julgados, honras e coutos senhoriais. E há consciência de que esses outros parâmetros da vida colectiva existem e atraem parte da mão-de-obra camponesa dos julgados, dos coutos e das honras.
Penso também que é possível conceber uma sociedade utopicamente igualitária. Evidentemente não se trata da sociedade sonhada por Marx. Não nos esqueçamos, porém, que existiam fortes laços de práticas sociais comunitárias, práticas que chegaram até aos nossos dias. E não só nas aldeias dos senhorios feudais. O concelho era a comuna ou comum e os homens dirigentes do concelho os comunais. Só que esta comuna era já profundamente desigual e contraditória. Mas subsistiam bens do concelho ou do comum, tendas, fornos, baldios; subsistia a organização do comum e a de grupo, como eram os hospitais. Não tinham ao seu alcance processos de acumulação capitalista. Certamente não apresentavam a intensidade dos processos de acumulação dos séculos XVI, XVII, XVIII, XIX ou XX. Mas havia processos de acumulação e havia cabedal: comércio desigual, expropriação e roubo puro e simples dos mais pequenos e fracos, manipulação da moeda e dos metais preciosos, cobrança das rendas senhoriais, monopólios e já apropriação de mais-valia dos assalariados dos campos e dos ofícios». In António Borges Coelho, A Revolução de 1383, Editorial Caminho, Colecção Universitária, 1984.

continua
Cortesia da Caminho/JDACT