terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

O Prior do Crato Contra Filipe II. Evocação Histórica. Mário Domingues. «Recordo-vos quando aí concederam isto, porque estes Estados estão muito afastados, quantos trabalhos deram ao coração de Castela os mouros de Granada sem armas e sem Rei, nem chefe, e quanto foi difícil derrotá-los»

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(Continuação)

15.ª - Recordo-vos, por aquilo que vos convém, que pondereis bem estes favores de Nosso Senhor, o que éreis então, o que eram os nossos inimigos e o que sucedeu. O mesmo Deus que então tínheis, o tendes agora, o qual nunca faltou, nem faltará, com um outro Nuno Álvares ou com uma outra donzela de França a tempo, segundo o juízo humano tão fora de remédio, o que por sua bondade não existe agora, se quereis unir-vos e pôr as facções de parte, tratando do bem comum, ou melhor pelo estada em que ao presente se encontram as coisas que vos recordarei.
16.ª - Recordo-vos que agora não vos achais como naquele tempo tão fracos nem tal mal armados, nem tão poucos em número, antes pelo contrário, se vós quereis e tudo a respeito do comum de Castela, com muito mais armas e maior exército. Pois que há 10 anos, exercitados naquelas nossas ordenanças com 15 ou 20 mil arcabuzes, os quais com a ocasião deste tempo, me fazem tão diferente de Castela, porque não tem hoje arcabuzes nem soldados que os saibam manejar, e em mim não há aldeia onde não haja seis.
17.ª - Recordo-vos que os seus soldados velhos e gente de guarnição que tem e com os quais vos metem medo, são somente algumas guarnições dos Estados da Itália e de Flandres, os quais logo que sejam tirados de lá, contra mim, perderão tudo; e julgai-o por vós, se pusésseis o certo em risco pelo incerto, mesmo que fosse mais o incerto, sendo além disto o meu país apto a defender-se.
18.ª - Recordo-vos também que agora não se acha Castela corno naquele tempo em que estavam unidos e juntos aqueles três reinos, sem ter tantos Estados afastados que lhe convém sustentar. E que agora, além de Aragão e Navarra com seu rei, tem a Sicília e as outras ilhas, Nápoles, Milão, Flandres, Holanda, e Zelândia.
19.ª - Recordo-vos que todos estes reinos e Estados que lhe são juntos o intimidam muito mais do que ajudam, porque, pela distância havida entre eles, gasta-se mais em sustentá-los do que rendem. E por experiência se vê que eles mais tiram de Castela do que ela deles.
20.ª - Recordo-vos que todos os referidos Estados se acham tão oprimidos e escandalizados pela soberba e mau comportamento desta gente que só desejam uma ocasião em que possam alijar um jugo tão insuportável, e tanto que dizem, preferir mais ser  pelos turcos do que pelos castetlhanos.
21.ª - Recordo-vos que os referidos Estados fora de si fazem tão pouco que quando a Sicília, Nápoles e outros lugares marítimos se defenderam dos turcos e com as suas armas se defenderam assaz. E, que seja verdadeiro, mostram-no os cercos de Malta e da Goleta com o socorro que lhe deram, que Malta sendo assim importante, juntando-se o socorro de cá com o de lá, lhe foi dado por mim como se e tomaram Goleta, sem poderem socorrê-la, estando as duas coisos juntas.
22.ª - Recordo-vos quanto foi fácil ao Príncipe de Orange rebelar-me com aqueles Estados da Holanda e de Zelândia, dos quais era governador, e a Flandres tomá-lo por seu defensor e rebelar-se sem que até hoje possa dar-se remédio, nem parece que o terá tão cedo, porque aquela gente, com tal sujeição, mais tolera os trabalhos da guerra que os repousos da paz.
23.ª - Recordo-vos quando aí concederam isto, porque estes Estados estão muito afastados, quantos trabalhos deram ao coração de Castela os mouros de Granada sem armas e sem Rei, nem chefe, e quanto foi difícil derrotá-los.
24.ª – Recordo-vos que a guerra movida contra mim alterará todos aqueles reinos e Estados, começando por Aragão e em todos os outros. E a força não unida é como parede sem cal. Por uma só pedra que se mova, tudo se desfaz. E tanto mais quanto todos estão prontos a defender a liberdade, e, para isto, bastar-lhe-á qualquer exemplo.

continua

In Mário Domingues, O Prior do Crato Contra Filipe II, Evocação Histórica, edição da L. Romano Torres, Lisboa, 1965.

Cortesia de Romano Torres/JDACT